A tirania do mérito
Simplesmente, não se muda uma ideologia com um passe de mágica. Sobretudo quando essa ideologia foi interiorizada por gerações de indivíduos e transformada em força de lei. Mas, se é necessário começar a repensar as fundações desta ideologia, é precisamente através de livros como os de Sandel que vale a pena começar.
Uma das grandes questões do nosso tempo é a origem do populismo. Como se explica que, na última década, milhões de eleitores de países tão diferentes como os Estados Unidos, Brasil, Inglaterra, Itália ou Grécia tenham rejeitado a ortodoxia da globalização liberal e votado em candidatos ou posições populistas? A resposta a esta pergunta interessa não apenas aos académicos que estudam estas coisas. Interessa também, e sobretudo, ao público em geral. Afinal, sair da União Europeia ou ser governado durante cinco ou dez anos não são questões de somenos. Pelo contrário, são decisões políticas com repercussões profundas a médio e a longo prazo. Na realidade, podem mesmo representar um ponto de viragem na história recente de um país.
No livro A Tirania do Mérito, a sair dentro de dias, o filósofo político norte-americano Michael Sandel oferece uma resposta a que vale a pena prestar atenção. Desde logo, por ser dada por quem é. Michael Sandel é um caso invulgar. É um dos raros pensadores que é igualmente popular entre os seus alunos, o público em geral e (muitos) dos seus colegas. Há várias razões para isto. Sandel é capaz de explicar uma ideia complexa numa linguagem simples e escorreita. É também muito bom em sintetizar um conjunto de ideias que circulam em meios académicos numa formulação acessível à generalidade da população. E é exímio no uso de exemplos do dia-a-dia para ilustrar as suas ideias.
Todas estas qualidades estão presentes em A Tirania do Mérito. O título é uma glosa da tese de John Stuart Mill sobre a “tirania da maioria”. A tirania da maioria é um dos grandes perigos da democracia. O receio é que uma maioria imponha os seus pontos de vista e interesses a uma minoria da população, podendo redundar numa ditadura. A tese de Mill, que recupera e expande uma ideia anterior de Tocqueville em Da Democracia na América, fez escola entre os liberais dos dois lados do Atlântico no último século e meio. Sandel reverte esta ideia, mas mantém a tónica na democracia. Segundo Sandel, o populismo resulta da rejeição por parte da maioria da população de uma tirania imposta por uma minoria. Que tirania é esta? É a tirania do mérito, isto é, a ideia de uma ordem social e económica baseada no esforço e méritos individuais. Uma ideia que se tornou dominante sobretudo após a queda do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética e a consequente onda de globalização económica e cultural. De tão dominante esta ideia se tornou que Sandel fala mesmo em “tirania.” Uma ortodoxia que inclui universidades, instituições internacionais e uma boa parte dos meios de comunicação social internacionais. Uma forma de pensar comum entre as elites cosmopolitas que se sentem tão à-vontade a falar numa língua estrangeira num centro de congressos a milhares de quilómetros de casa, como a ler a Economist no seu telemóvel ou decidir para que universidade estrangeira mandar os seus filhos estudar.
Sucede que este modelo de sociedade baseado no esforço e méritos individuais é problemático. Por um lado, mesmo a mais perfeita meritocracia mais não é do que uma miragem, um objetivo que motiva a ação individual e coletiva, mas que nunca é plenamente alcançado. Isto dá azo a uma frustração constante que tem de ser continuamente atendida sob pena de redundar em descontentamento e revolta. Por outro lado, e esta é a ideia mais original de todo o livro, o outro problema da meritocracia é que não dá uma resposta satisfatória a quem perde. Todos aqueles que ficam para trás – na escola, na universidade, no emprego, na vida em geral – só têm a si mesmos que culpar. É porque não têm a escolaridade necessária, não acabaram o curso universitário, ou não têm a formação profissional necessária. É porque não se esforçaram tanto como os outros. É porque, em suma, falharam. Ser-se falhado é mil vezes pior do que falhar por razões que nos são alheias. Interiorizar que se é um falhado é um fardo psicológico e moral imenso. E que, explica Sandel, gera um igualmente imenso rancor e ressentimento contra todos aqueles que são mais bem-sucedidos.
É aqui que nasce o populismo. É da manipulação política deste ressentimento que nasce o populismo. Um populismo que, à esquerda e à direita, é usado para atrair o voto dos descontentes com a globalização.
A solução preconizada em A Tirania do Mérito aponta para uma revalorização do trabalho. Sobretudo do trabalho em áreas ou domínios essenciais mas que, por variadas razões, é hoje pouco valorizado e mal remunerado. Pense-se no trabalho de todos quantos, nos hospitais e lares por esse mundo fora, muitas vezes recebendo o salário mínimo, mas que sem o qual o combate à pandemia da covid-19 não teria sido possível de todo. Mas, por mais bondosa que seja a solução de Sandel, o projeto de uma “reavaliação de virtudes” é mais uma solução de filósofo do que uma proposta política. Simplesmente, não se muda uma ideologia com um passe de mágica. Sobretudo quando essa ideologia foi interiorizada por gerações de indivíduos e transformada em força de lei. Mas se é necessário começar a repensar as fundações desta ideologia é precisamente através de livros como os de Sandel que vale a pena começar.
Um outro problema, talvez até maior, é o silêncio de Sandel sobre a cultura, em particular, sobre as guerras culturais dos dias que correm. Ninguém sabe se estas são uma causa do populismo ou se é o populismo, com a sua ênfase no verbo fácil e na política das emoções, que está por detrás delas. A verdade é que, por exemplo, não se compreende Trump se se ignorar a guerra sem quartel entre diferentes formas de vida, diferentes valores morais e diferentes normas sociais que tem instigado desde a primeira hora e que ameaça tornar a próxima eleição num beco sem saída. O problema a que Sandel tem de responder é este: como abrir mão da meritocracia, mantendo o pluralismo de formas de vida que, durante décadas, serviu de antídoto às guerras culturais que tomaram agora de assalto as nossas sociedades?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico