Nem todos os homens?

O assédio não vem sempre em forma de palavrões. Às vezes é subtil, e até educado. Às vezes vem do nosso vizinho simpático, ou do rapaz que conhecemos há uns dias e com quem nos estávamos a dar tão bem. Às vezes vem de alguém bem-intencionado.

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Alex Jones/Unsplash

A história da Sara Sequeira, do assédio que sofreu e dos comentários em redes sociais que a culpabilizam despertou em muitas mulheres memórias de situações semelhantes.

A primeira vez que me senti assim foi aos seis anos. O responsável foi um adolescente, meu vizinho, simpaticíssimo e muito sociável. Depois do sucedido, ouvi por detrás de uma porta a sua justificação: “Com ela sentada daquela maneira, o que era suposto eu fazer?”

Anos depois, durante umas férias, bebi demais numa noite e um rapaz, que conhecera há dias e com quem me estava a dar muito bem, ofereceu-se para me levar ao hotel. Eu aceitei, agradecida. Contaram-me que mais tarde ele me dirigiu todo o tipo de insultos porque não o levei para o quarto.

Em teoria, eu sabia que não tinha feito nada de errado. Na prática, a sensação de que eu era responsável foi-se interiorizando e manifestou-se durante um encontro, quando o rapaz com quem estava tentou tirar-me a camisola. Afastei-o e a noite acabou aí. Mas, antes de me ir embora, pedi-lhe desculpa.

Estas acções individuais talvez sejam suficientes para que as mulheres interiorizem a ideia de que estão a pedi-las. Mas existe uma estrutura que reforça essa ideia.

Para mim, essa estrutura ficou escancarada pela primeira vez quando tinha 15 anos. Queria ir a uma festa à noite e voltar no primeiro comboio da manhã, e os meus pais não deixaram. Protestei: “Com 15 anos, o meu irmão já voltava às horas que quisesse”. Responderam-me: “ele é rapaz”.

Compreendo perfeitamente o raciocínio. Por mais feministas que sejam, seriam ingénuos se acreditassem que eu não estaria a correr mais riscos do que o meu irmão ao apanhar um comboio de madrugada.

Mas a estrutura já me tinha surgido antes, mais discreta, aos 12 anos. O grupo de uma actividade extracurricular em que participava organizou uma viagem e, numa noite, um dos rapazes, mais velho, sentou-se ao meu lado na sala de estar e tentou mostrar-me vídeos pornográficos no seu computador. De volta a casa, contei à minha mãe, que falou com os responsáveis para que se tomassem medidas. Quando voltei a vê-los, disseram-me que o rapaz tinha negado a minha acusação e não havia como saber qual de nós estava a mentir. Depois, disseram: “Devias ter falado connosco e não com a tua mãe. Manchaste a nossa imagem lá fora.” Para o rapaz, nenhuma consequência.

Não conto isto por achar que a minha experiência é única e reveladora por si só. Conto porque quero trazer à discussão dois pontos que muitas vezes se perdem quando falamos de assédio — e que são cruciais para que a discussão avance.

O primeiro é que o arquétipo do assediador não corresponde à realidade. Temos sempre a imagem do homem velho e suado que nos grita palavrões enquanto bebe cerveja e cospe para o chão. A nossa experiência quando ouvimos um piropo na rua – ou no comboio – corrobora essa ideia. Mas o assédio não vem sempre em forma de palavrões. Às vezes é subtil, e até educado. Às vezes vem do nosso vizinho simpático, ou do rapaz que conhecemos há uns dias e com quem nos estávamos a dar tão bem. Às vezes vem de alguém bem-intencionado.

É importante lembrar isso porque se restringirmos o assediador à caricatura vamos sempre ficar surpreendidos quando o acusado não encaixa nela. Sem querer, vamos protegê-lo, duvidar da vítima e reforçar o seu sentimento de culpa. Ele próprio, ao não se rever nessa imagem, dificilmente vai problematizar o seu comportamento.

O segundo ponto é que este não é um problema que se resolva caso a caso. Não serve pensar que apenas alguns homens são assim. Tão pouco serve pensar que todos os homens são assim. Devemos, sim, pensar que existe essa tal estrutura, que permite que todos os homens se sintam à vontade para ser assim. Que obriga pais a criar filhos e filhas de forma desigual, que faz com que organizações se preocupem mais com a sua reputação do que com a segurança das suas integrantes. Que leva mulheres a sentirem que se devem desculpar pelas barreiras que impõem e que as silenciam quando ganham finalmente coragem para expor as suas histórias.

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