Sobre os dois irmãos de Famalicão
Não é preciso reinventar a roda e só soluções com um equilíbrio feliz entre a flexibilidade e a obrigatoriedade poderão evitar que o Estado e a escola pública voltem de novo a ficar tão facilmente em xeque, uma vulnerabilidade que será sempre tentadora para o populista que estiver na berra. Não nos iludamos.
A história já é sobejamente conhecida, mas tem uma complexidade que pede um resumo. No ano lectivo de 2018/19, alegando “objecção de consciência”, Artur Mesquita Guimarães não permitiu que dois dos seus filhos, de 12 e 14 anos, frequentassem as aulas de Cidadania e Desenvolvimento (CD). Apesar de a frequência ser obrigatória e de os pais terem recusado o plano de recuperação de aprendizagens proposto em Fevereiro de 2019, o Conselho de Turmas da escola acabou por ceder e deixar que os alunos passassem de ano. A tensão persistiu no ano lectivo de 2019/20: em Dezembro de 2019, os pais foram notificados de que os seus dois filhos iriam ser referenciados para a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens; em Janeiro de 2020, a Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares emitiu um parecer em que considerava ilegal a passagem de ano anterior e propunha um novo plano de recuperação das aprendizagens para 2018/19 e 2019/20, documento homologado pelo secretário de Estado Adjunto e da Educação; a Junho de 2020, tendo sido de novo ignorados os planos de recuperação, o director do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco anulou as decisões do Conselho de Turma, que entendera passar os alunos em 2018/19 e 2019/20, o que implicava um chumbo de dois anos. Os chumbos foram entretanto suspensos por uma providência no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
A polémica estalou, cristalizando-se sob a forma de dois manifestos. No primeiro manifesto (“Em defesa das liberdades de educação”), assinado por 86 cidadãos, incluindo um dos autores deste artigo, defende-se “a prioridade do direito e dever das mães e pais quanto ao género de educação a dar aos seus filhos”. No segundo manifesto, intitulado “Cidadania e desenvolvimento: a cidadania não é uma opção”, que podemos entender como uma resposta ao primeiro e contou com mais de 500 signatários, defende-se a obrigatoriedade do ensino da disciplina de CD, frisando-se que a aprendizagem dos Direitos Humanos e da Cidadania “não é um conteúdo ideológico”.
O primeiro manifesto não esclarece como se protege o ensino oficial do abuso da objecção de consciência, que poderia ser explorada de forma caprichosa ou desonesta, inclusive para contornar dificuldades de aprendizagem a certas disciplinas. O segundo manifesto simplifica o problema ao centrar-se no conhecimento básico sobre os Direitos Humanos e a Cidadania, descrição que não gera dissenso mas camufla a questão nuclear, sendo sabido por todos que o domínio do programa da disciplina de CD que gera tensão é a “sexualidade”, nomeadamente a educação sexual e a identidade de género. Esta polémica já suscitou muitas opiniões e seria inútil detalhar a visão dos dois autores deste artigo sobre a obrigatoriedade da temática sexual nas escolas, bastando adiantar que não é coincidente, pois um de nós entende-a como assunto a ser tratado primacialmente na esfera familiar e o outro como uma matéria que deve ser ensinada nas escolas no âmbito estrito da Biologia e das implicações para a saúde.
Não pretendemos discutir aqui se a CD deve ser obrigatória ou facultativa, nem avaliar em profundidade as vantagens e desvantagens de autonomizar um programa sobre cidadania numa cadeira de características peculiares (a CD não tem avaliação), sendo certo que muitos dos temas poderiam ser abordados de modo transversal noutras disciplinas dos respectivos anos (a História e Ciências Naturais do 2.º e 3.º ciclos e ainda, por exemplo, as Tecnologias de Informação e Comunicação do 3.º ciclo), eventualmente em benefício da contextualização da matéria, pois a CD vai beber a muitos saberes, e tornando o sistema de ensino menos vulnerável à guerrilha cultural e ataques estimulados por partidos políticos. O tema é complexo, pois a definição do que é “conteúdo ideológico” e simples matéria de facto não se afigura simples e o propósito constitucional de esvaziar o ensino (obrigatório) de “quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” não resiste a uma leitura em sentido estrito. Afinal, o primado da liberdade individual e a defesa da Democracia e do Estado de Direito, ideais que hoje 99% dos cidadãos têm por bons e a escola pública promove sem gerar conflito, estão túrgidos de directrizes políticas e filosóficas. Enfim, no que concordamos sem qualquer ressalva é na inadequação da resposta do Estado a este caso.
A intransigência deste pai de Vila Nova de Famalicão, que já declarou estar disposto a levar o caso aos Tribunais Europeus, constitui um teste de stress ao sistema. Nos testes de stress, a situação é levada a um limite extremo e, não raras vezes, tal como na argumentação, o recurso a um extremo conduz a situações absurdas. Muitos dirão que apenas a atitude do pai foi absurda, ao ter colocado o futuro escolar dos filhos em risco. Também não é a discussão que nos interessa agora; não será aqui que analisaremos se este pai é um cidadão heróico fiel ao seu ideal de liberdade, um mártir, um fanático ou até um instrumento manipulado por alguma força liberal, católica, anti-sistema ou populista. Preocupa-nos apenas a robustez do Estado de Direito e o normal funcionamento da escola pública. Estando o caso suspenso e aguardando decisão judicial, dir-se-ia que a separação de poderes está a funcionar. Mas não dá grande conforto saber que a Justiça terá de intervir neste caso. O que este teste revelou foi a ausência de mecanismos de dissuasão e de válvulas de segurança na escola pública capazes de prevenir e dissipar uma tensão que, segundo as soluções propostas pelo ME, só pode ter como desfecho um recuo de dois anos para estes dois alunos. O teste de stress é mesmo perfeito, pois sabemos que os dois alunos são exemplares, tendo média de 5 e uma relação excelente com os colegas, o que faz com que o seu castigo por causa do comportamento dos pais pareça ainda mais medieval.
Como já escreveu sobre este assunto quem conhece e tem pensado sobre o sistema de ensino, “Um aluno ‘chumba’ a uma disciplina (ou duas) e passa sem problemas. Pode ser História, pode ser Inglês, até pode ser a sacrossanta Matemática e ninguém recorre e mete governantes à mistura, com despachos ambíguos que dão cobertura a tudo e o seu contrário”. Este relato da “vida como ela é” nas escolas choca com o formalismo do ME e o apelo implícito ao bom senso quase soa a excentricidade numa discussão em que o encarniçamento ideológico fez esquecer o absurdo de punir os filhos sendo os eventuais culpados os seus pais. No fundo, o comportamento deste pai, mesmo aos olhos daqueles que o condenam, não terá sido suficientemente grave para que o Estado peça a tutela dos filhos (esperamos não estar a dar ideias, pois seria inadmissível) e, assim, descobrimos que no gradiente decrescente de irresponsabilidade ou negligência parental há um limiar em que o Estado passa de pai adoptivo extremoso a pai tirano implacável, castigador de crianças, sem que esta metamorfose seja repudiada pelas forças de esquerda, que gostam de se imaginar sempre do lado dos mais fracos mas estão viciadas em jacobinismo. A decisão do ME, detalhadamente justificada no Parlamento e na imprensa, sempre dentro de uma trincheira legalista e burocrática que ignora a verdadeira equidade, isto é, a aplicação sensata da lei ajustando-a a todas as nuances que o legislador não consegue prever, só se pode entender como uma lição para que outros não voltem a tentar desafiar o Estado da mesma forma. Ora, se um Estado começa a penalizar crianças para dar exemplos dissuasores aos cidadãos, talvez a frequência da cadeira de CD tenha de passar a ser obrigatória para qualquer membro de um Governo e, explicitamente para estes, sem direito à “objecção de consciência”.
Uns entenderão que deve prevalecer o direito de objecção dos pais e outros a obrigatoriedade do ensino da disciplina de CD. Mas existirão certamente soluções de compromisso por experimentar que protegem a escola e o Estado, permitindo-lhe ainda uma saída airosa deste caso. Se, um dia, o caminho a seguir for a não-obrigatoriedade da CD, haverá soluções criativas que promovam a universalidade do seu ensino mesmo sem obrigatoriedade formal, como, por exemplo, as que se discutem há anos em vários países para assegurar a vacinação das populações. Haverá, por fim, soluções que não levem à banalização da “objecção de consciência”, caso seja este o rumo a seguir um dia. Não é preciso reinventar a roda e só soluções com um equilíbrio feliz entre a flexibilidade e a obrigatoriedade poderão evitar que o Estado e a escola pública voltem de novo a ficar tão facilmente em xeque, uma vulnerabilidade que será sempre tentadora para o populista que estiver na berra. Não nos iludamos. Não sendo imaginável que, enquanto não se conhecer a decisão judicial, o ME impeça a matrícula no ano previsto se não tivesse havido chumbo, e com a morosidade da Justiça e as possibilidades de recurso, o tempo contará a favor do pai das crianças, que entretanto irão passando de ano. Porque ninguém imagina um Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a dar razão ao ME daqui a dois anos, obrigando os alunos a recuar quatro anos na sua formação escolar. E não nos iludamos também sobre a fragilidade em que ficaria a escola pública se a moda da objecção de consciência pega, pois se alguma família negra resolver alegar que não quer os filhos expostos a uma visão colonialista da História, não haverá sequer cinco activistas de esquerda dispostos a zelar pela obrigatoriedade do ensino agora defendida por mais de 500, nem um movimento de personalidades maioritariamente de direita alarmado com a imposições do ME. Alguém duvida?
Para evitar que a escola seja um território de disputas e polémicas que nela não deveriam entrar, impor-se-ia mais bom senso da parte de quem fez a lei, de quem a aplica agora e, naturalmente, dos pais e encarregados de educação destas e de todas as outras crianças portuguesas, que não mereciam ser tratadas como soldados involuntários de guerras que não são delas.
Vasco M. Barreto, biólogo
António Araújo, jurista e historiador