Semeando dentes de dragão
Quando repetimos mitos sobre os lusitanos ou outros antepassados “heroicos” da sociedade portuguesa, construindo-os como os legítimos ocupantes brancos da antiga metrópole ou dos trópicos (luso-tropicalismo), a mesma metáfora que um dia sancionou o império colonial é reavivada, ainda que num contexto pós-colonial e sem que seja assumida como o centro de uma ideologia de Estado.
O ato de descolonizar nunca é metafórico. Implica a restituição de terras e de bens, a transferência de soberania e o pagamento de compensações. Que esta restituição seja condicionada pelos colonizadores; que a soberania pós-independência seja cerceada nos fóruns internacionais; e que, por norma, sejam as vítimas dos impérios quem paga as compensações são factos históricos que atestam a má vontade com que os Estados ocidentais aquiesceram a participar num processo histórico inevitável, mas que feriu os seus interesses económicos e estratégicos. Ora, se a descolonização nunca é metafórica, assentando sempre na reparação material de uma situação de abuso extremo, a colonização depende sempre de metáforas, mitos e alegorias. Depende, para ser mais preciso, da sua aceitação acrítica e irrefletida por parte da população que ocupa o território metropolitano, e da tentativa de os impor enquanto senso comum a outras comunidades, aqui e em outras latitudes. É impossível chamar a este aglomerado difuso de crenças e fábulas uma “ideologia”, porque tal seria impor-lhe uma estrutura e uma coerência lógica que não o caracterizam. Contudo, é deste fundo cultural mitológico que os ideólogos colhem os elementos com que adornam os seus sistemas abstratos, tornando-os apelativos e mobilizadores.
O racismo estrutural traduz-se num sistema de controlo político diferenciado das diversas populações racializadas, quer brancas, quer negras, ciganas, ou outras, que depende em Portugal da recapitulação inconsciente de elementos da ideologia imperial apurada nas escolas públicas da Primeira República e do Estado Novo. A mitologia em que esta ideologia assenta, porém, é arcaica, com raízes mais profundas e que precisam de ser cauterizadas, pois delas também pode brotar o fascismo. Não é por acaso que a metáfora que enformou o graffito escrito nas paredes da sede do SOS Racismo no passado dia 21 de julho, onde se lia “Guerra aos inimigos da Minha Terra”, tenha sido a mesma que enformou, ao que parece, as últimas palavras que Bruno Candé ouviu pouco antes de morrer, alguns dias depois. Atendendo ao fundo mitológico evocado em ambos os casos, é difícil não perceber o assassinato de Bruno como o executar semiconsciente de um programa político multissecular, que foi verbalizado inequivocamente neste graffito, mas que enforma muitas outras manifestações culturais portuguesas, tão corriqueiras quanto banais.
A metáfora em causa é a da autoctonia, uma das muitas heranças helénicas centrais ao nosso modo de sentir e pensar. Num sentido literal, autóctones são os míticos “filhos da terra”, os primeiros habitantes de Atenas e de Tebas, que os helenos acreditavam terem nascido espontaneamente do solo da Ática e da Beócia. Cadmo, irmão mais velho de Europa, era celebrado pelos gregos como herói fundador de Tebas por ter semeado na “terra” da Beócia dentes de dragão, de onde se acreditava terem brotado, já adultos e armados, os antepassados das famílias nobres da cidade. Discorrendo sobre Atenas, inúmeros oradores, dramaturgos, filósofos e historiadores, de entre os quais Aristófanes, Demóstenes, Eurípides, Heródoto, Platão e Tucídides, defendiam a superioridade política dos atenienses autóctones da Ática face aos imigrantes que integravam a “sua” polis, referindo a ligação matricial e genética dos primeiros com a “terra”, e comparando os segundos a “filhos adotivos”. Os imigrantes eram tolerados, mas sempre segregados.
Hoje não acreditamos em dragões, nem nos poderes mágicos ou demiúrgicos de deuses, heróis e ‘terras’ mátrias que parem homens já feitos. Porém, a metáfora da autoctonia, que compara seres humanos a espécies vegetais espontâneas, é recapitulada nos nossos museus, centros interpretativos, celebrações patrimoniais, livros escolares, programas televisivos e em milhares de outras manifestações culturais. Não celebramos Cadmo, mas continuamos a não questionar seriamente a herança institucional de “heróis” fundadores como Martins Sarmento, Leite de Vasconcelos, Bernardino Machado, Mendes Corrêa, António Ferro, Manuel Heleno ou, mais próximos de nós, Jorge Dias e toda a sua equipa. Estes homens e mulheres semearam os “dentes de dragão” de onde nasceram os “lusitanos”, “celtas”, “castrejos” e tantos outros povos e grupos mitificados que pululam nos nossos museus arqueológicos, etnológicos e etnográficos, e que são sempre imaginados enquanto brancos.
Ao associar estes “antepassados” e seus traços arqueológicos e arquitetónicos apenas à parcela branca da população portuguesa, estas instituições, nas suas declinações nacionais e municipais ou variantes “patrimoniais”, fixam esta “terra” como “terra” branca. Isto, enquanto situam os “indígenas” negros nas antigas colónias, numa posição de menoridade política. As mitologias da “descoberta” e do “sangue derramado” garantem este segundo passo, ao afiançarem que, apesar de África ser originalmente a “terra” dos negros, coube aos “filhos da terra” brancos governar as colónias, civilizando-as e deixando nessas “praias distantes” marcos de uma presença tão autóctone como a dos “indígenas”. Quando repetimos mitos sobre os lusitanos ou outros antepassados “heroicos” da sociedade portuguesa, construindo-os como os legítimos ocupantes brancos da antiga metrópole ou dos trópicos (luso-tropicalismo), a mesma metáfora que um dia sancionou o império colonial é reavivada, ainda que num contexto pós-colonial e sem que seja assumida como o centro de uma ideologia de Estado.
Num segundo momento, ao fazer depender o direito à cidadania plena de uma ligação imaginária à “terra”, este mito garante que nenhum português negro seja reconhecido como integrante da nossa polis, mas apenas tolerado. Isto, mesmo na ausência de leis especiais claramente discriminatórias, ou de um sistema de apartheid formalizado, e apesar de todos os esforços daqueles que entendem que os portugueses negros devem ser “aceites” ou “tolerados”. Para que esta situação seja superada definitivamente, evitando casos trágicos como os do passado mês de julho, é necessário que o nosso imaginário político deixe de recorrer à metáfora da ligação matricial com a “terra”, e que o nosso pacto social assente numa mitologia alternativa, que garanta que qualquer recém-naturalizado tenha a mesma legitimidade política que os membros das primeiras, segundas, terceiras ou outras gerações de portugueses. O ideal seria deixar de as contar.
No mito grego, depois de semear os dentes de dragão, Cadmo provoca uma guerra fratricida entre os guerreiros que brotam da terra, interessando-lhe a sobrevivência apenas dos mais fortes. Este parece ser o desfecho de todas as mitologias políticas assentes na autoctonia, como testemunham o graffito feito na sede da SOS Racismo e o assassinato brutal de Bruno Candé.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico