Eu não estou bem

Sou saudável, cultivo relações estáveis e felizes. Parece que estão aqui todos os ingredientes para uma vida boa, não é? No entanto, este vírus chegou e desorganizou tudo o que conhecemos, deixando-nos um legado de experiências e emoções inéditas. Então, aqui vos confesso: eu não estou bem.

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Estou a trabalhar em casa desde Março, como muitas das pessoas que conseguiram manter as suas actividades profissionais. Acordo à mesma hora, tenho a mesma quantidade de tarefas diárias, faço exercício, adoptei o hábito de fazer caminhadas enquanto ouço podcasts, e o tempo que ganho por não ter de me deslocar até ao escritório no centro da cidade é canalizado para horas de leitura, séries, filmes ou, honestamente, pura distracção e procrastinação.

Considero-me uma pessoa activa, esforço-me por conservar o ritmo profissional pré-pandemia e continuo a procurar fontes de inspiração e motivação. Sou saudável, cultivo relações estáveis e felizes. Parece que estão aqui todos os ingredientes para uma vida boa, não é? No entanto, este vírus chegou e desorganizou e desafiou tudo o que conhecemos, deixando-nos um legado de experiências e emoções inéditas. Então, aqui vos confesso: eu não estou bem.

Eu não estou bem, porque raramente saio de casa e os meus espaços de lazer e dever sobrepõem-se. Eu não estou bem, porque não vi pessoas que amo durante vários meses, outras não vejo sequer desde Fevereiro. Eu não estou bem, porque deixei de dar aulas presenciais, de organizar o meu clube de escrita no café do costume, de conviver com várias pessoas no mesmo espaço, porque estou farta de chamadas e mensagens, de viver através do telemóvel e do computador. Eu não estou bem, porque perdi abraços, espontaneidade, confiança, liberdade de movimento, conforto. Eu não estou bem, porque agora sei que nada é garantido. E acredito que estas são dores partilhadas por muita gente.

Passamos cada vez mais tempo em frente de monitores, desgastados pela luz azul e pelo défice de exposição à luz natural, que interferem nos nossos ritmos de sono. A falta de interacção presencial esgota-nos, porque ver outra pessoa no seu quadrado pixelizado, captada por uma câmara, não é biologicamente igual a olhá-la olhos nos olhos e frente a frente. Reinventamos actividades sociais à distância (eu que o diga, ferrenha entusiasta das vantagens do online), mas todos sabemos que não é a mesma coisa. É muito mais difícil alimentar relações e colher o bem-estar da socialização, quando não estamos programados para construir relações mediadas por ecrãs. Quando os encontros virtuais deixam de ser uma opção entre muitas para se tornarem a única, o seu encanto esmorece.

Por estas razões e pelas que ficam por enumerar, gostava que uma das novidades a que nos pudéssemos habituar fosse assumir a vulnerabilidade com que recebemos o aborrecimento, a saudade e a incerteza, nos dias em que a energia falha: eu não estou bem. Eu não estou bem, porque há tanto em que pensar, e agora também não estou mal, mas tenho medo do que possa acontecer neste futuro cada vez mais incerto — a mim, aos meus, ao país, ao mundo. Tudo isto causa ansiedade e frustração.

Tu também não estás bem? Não faz mal. Vamos esperar que estas dificuldades em larga escala nos sirvam como lição de humanidade e que, partilhadas, nos consigam aproximar.

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