O futuro do PCP

Ao contrário do que diz Jerónimo de Sousa, o que está em causa, neste momento, não é uma campanha contra o PCP. O que está em causa é o futuro do PCP.

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Rui Gaudêncio

O PCP foi fundado em 1921, como a secção portuguesa da III Internacional Comunista (o Komitern, promovido por Lenin e dirigido a partir da URSS). O PCP foi ilegalizado ainda na década de 20. Na clandestinidade, durante décadas, opôs-se ao regime salazarista, tendo vários dos seus dirigentes sido presos e torturados.

Legalizado na sequência do 25 de Abril de 1974, o PCP, enquanto partido, reiterou a sua ortodoxia marxista-leninista e foi uma força política fundamental no período de formação da democracia, apesar de não serem claros os termos em que pode ter liderado – em 1974/75 – a tentativa de instauração de um regime comunista tipo soviético.

As primeiras eleições legislativas democráticas, realizadas a 25 de Abril de 1975, deram ao PCP 12,5% dos votos (abaixo das suas expectativas), afirmando-o, depois do PS e do PPD, como terceira força política. O levantamento militar de 25 de Novembro de 1975, que travou a vontade de parte do MFA, de instauração de um regime de extrema-esquerda, alterou o equilíbrio de forças no sistema de poder. O PCP, a partir de 1979, passa a concorrer às eleições nacionais coligado, primeiro, com a sigla APU – obtendo 18,8% nessa data – e depois como CDU (a partir de 1987).

Mas desde o resultado histórico que o aproximou, em 1979, dos 20% dos votos expressos (em coligação), o PCP diminuiu o seu peso eleitoral. A CDU teve 12,1% em 1987, 9% em 1999, 7,9% em 2009, 6,3% em 2019. A nível municipal, a presença do PCP também se reduz, tendo perdido nas últimas eleições autárquicas (2017) 10 câmaras, entre as quais as de Almada, Barreiro e Beja (9 destas câmaras foram perdidas a favor do PS). Em termos práticos (apesar de ainda manter uma intervenção forte no quadro sindical), a decisão de aliança do PCP com o PS, que, conjuntamente com o BE, viabilizou, em 2015, o 1.º Governo Costa, teve resultados políticos negativos para o PCP, e beneficiou o PS, como se verifica pela geografia eleitoral.

A tendência de perda de influência do PCP na sociedade portuguesa pode agravar-se, curiosamente, por iniciativa própria estou a falar da insistência na realização da Festa do Avante! em contexto de pandemia.

Desde Março passado, legislação vária limitou direitos básicos, com fundamento na necessidade de evitar a propagação da covid-19. Deixou de ser possível fazer o luto como é costume entre nós. A liberdade de culto e de reunião foi fortemente limitada. O mesmo aconteceu com o acesso a bens de mercado. As viagens foram proibidas ou restringidas. A atividade cultural foi afetada de forma brutal. No que respeita às artes de palco, a lei n.º 19/2020 de 29 de maio, diz que “é proibida, até 30 de setembro de 2020, a realização ao vivo em recintos cobertos ou ao ar livre de festivais e espetáculos de natureza análoga.”

A Festa do Avante!, a ocorrer no início de Setembro, não é uma iniciativa análoga a um festival? Vejamos como a define o PCP: “A Festa do Avante! é a maior e mais bonita iniciativa político-cultural feita algum dia no nosso País, uma obra colectiva alicerçada e edificada pelos valores da generosidade, do empenhamento militante, da solidariedade e convívio fraterno em que o trabalho e a arte brotam como fonte de realização humana. Uma Festa que é um espaço privilegiado para a cultura e a criação artística.” (sinopse retirada do site da Inspeção Geral de Atividades Culturais, em “Espetáculos de natureza artística”). A última frase da sinopse que o PCP usa para definir a Festa – “um espaço privilegiado para a cultura e a criação artística” – demonstra que o partido reconhece a importância da cultura e das artes na iniciativa como elemento constitutivo. Então porque não é tratada, como qualquer outro “festival e espetáculos de natureza análoga”?

Claro que a Festa é uma oportunidade para os artistas trabalharem, num momento de carência para os profissionais desta área. E é um marco importante na atividade do PCP e da agenda nacional. Mas o que está em causa é mais importante – a igualdade dos cidadãos face à lei, um dos princípios basilares dos Estados democráticos. Dir-se-á que outro princípio basilar é a liberdade de atividade política, protegida pela Constituição, como defende o Governo, ao dizer que não pode proibir a Festa. Note-se que esta atitude não é só de um paladino do sistema legal. O PS precisa do PCP no Parlamento e, ao mesmo tempo, esta teimosia do PCP só o tem prejudicado junto da opinião pública, podendo alargar a margem de manobra do PS.

Seguindo o argumento que permite a Festa do Avante!, os organizadores de espetáculos devem criar um partido político: o PAE – Partido das Artes do Espetáculo. Se colocarem um logo do PAE em cada festival ou espetáculo, chamando-lhes iniciativas político-culturais, e, como faz a Festa do Avante!, cobrando bilhetes, estará tudo bem. É que, com razão, criou-se, na sociedade portuguesa, a ideia de que na Política se pode mais que em outros setores face aos mesmos constrangimentos — como na Cultura, Religião, Desporto, ou Comércio, que têm estado fortemente limitados, com consequências graves.

Em Espanha, por comunicado do Comité Central, o Partido Comunista de Espanha (PCE), “por prudência e responsabilidade”, decidiu não realizar, este ano, a sua Festa. O modo como os decisores políticos estão a tratar a Festa do Avante!, de repente, transformou o autoproclamado partido dos desfavorecidos – o PCP – no partido dos favorecidos. Ao contrário do que diz Jerónimo de Sousa, o que está em causa, neste momento, não é uma campanha contra o PCP. O que está em causa é o futuro do PCP. Entretanto, partidos centrais no nosso regime democrático – o PS e o PSD – continuam a gerir a sua ação com base em taticismos. Como consequência, poderemos ter surpresas em termos de distribuição futura de poder partidário, face aos anos difíceis que vamos ter pela frente, alienando aqueles que já estão em condição de pobreza ou para lá caminham a grande velocidade e diminuindo, ainda mais, a participação política – as eleições de 2019, com 51% de abstenção, são disso sinal evidente.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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