Todos: se “o dinheiro é de todos”, que as decisões sobre como o investir também o sejam
Portugal deve organizar uma assembleia de cidadãos para decidir, de forma genuinamente democrática, como usar os fundos europeus de recuperação que aí vêm.
Dezenas de milhares de milhões de euros, com início já em menos de seis meses. As nossas elites — a política, a económica, a tecnocrática, a da “sociedade civil” — movimentam-se já elaborando visões, delineando planos e elencando prioridades. Há razões para preocupação: na mente de muitos, surgem os fantasmas sobre o uso que (não) fizemos de oportunidades semelhantes no passado.
Este breve artigo apresenta uma proposta radical de corte com o passado e com a nossa tradição de tomar decisões desta natureza e envergadura. Não encontrará neste texto nenhuma proposta sobre como usar os fundos que aí vêm. Apresentarei, sim, uma visão de como a sociedade portuguesa pode tomar estas decisões fundamentais. Acredito que só esta visão nos oferece verdadeiramente uma oportunidade de nos desviarmos do triste caminho que, neste e outros domínios, trilhamos desde a adesão de Portugal à então CEE, em 1986.
1. “O dinheiro é de todos” e “todos têm o seu contributo a dar” sobre como irão ser usados os fundos. “É preciso que haja [uma] discussão” e “que todos participem nela”. Assim falou o Presidente da República a 21 de Julho. Não poderia estar mais de acordo, especialmente depois da bizarra iniciativa do Governo de contratar a elaboração de uma “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030” a um (1) gestor. As declarações de Marcelo Rebelo de Sousa são um antídoto importante, reinjectando importantes ideais democráticos nesta discussão.
2. No entanto, urge tomarmos estas decisões colectivas de uma forma genuinamente democrática. Na mesma intervenção, Rebelo de Sousa deixou antever o que aí vem: “os sindicatos, os patrões, as universidades, as entidades da sociedade civil” irão dar os seus contributos. Teremos “um debate amplo, em que o Governo tem um papel importante, mas o Parlamento e os partidos em geral, e os parceiros económicos e sociais e os portugueses” também.
Ou seja: o sistema político português, em articulação com os parceiros sociais e as organizações da “sociedade civil” do costume, irão tomar estas decisões por todos nós. Quem fica quase totalmente ausente deste “debate amplo” que o Presidente diz ser vitalmente importante — e, quando surge, aparece no final da lista elencada pelo chefe de Estado? “Os portugueses.” Ou seja, os 99,99% da população que não circulam pelos corredores do poder.
3. Há uma forma radicalmente diferente de decidirmos como usar estes fundos. Encontramos o seu exemplo mais recente num processo que ocorreu nestes últimos meses em França, e através do qual o Governo de Macron nos oferece uma visão brilhantemente inovadora de como uma sociedade pode tomar decisões de cariz estratégico.
Ao longo dos últimos dois anos, a França teve dificuldade em implementar uma estratégia integrada para fazer face à crise climática. De forma desanimadora, a mera tentativa do Governo francês de aumentar os impostos sobre os combustíveis tinha levado a meses de forte contestação social. Macron foi eventualmente forçado a recuar e a buscar outro caminho. O que fez?
O seu Governo optou por organizar uma assembleia de cidadãos. De Outubro de 2019 até ao último mês de Junho, 150 cidadãos franceses escolhidos por sorteio trabalharam em conjunto para criar uma estratégia francesa de combate à crise climática.
Estes 150 franceses não eram políticos profissionais nem especialistas em questões climáticas. Longe disso: eram “pessoas comuns” que, em conjunto, formavam um microcosmo da sociedade francesa. Géneros, raças, idades, profissões, níveis de educação e rendimento, zona de residência: estes 150 franceses espelhavam, em todos estes aspectos, a diversidade do seu país.
Ao longo de nove meses, os participantes nesta “Convenção de Cidadãos para o Clima” aprenderam sobre os complexos temas envolvidos, escutando e consultando um conjunto diverso de especialistas, organizações da sociedade civil, políticos, bem como recolhendo abundantes inputs do público; trabalharam em conjunto, com a assistência de facilitadores incumbidos de assegurar um ambiente de trabalho produtivo e onde todas as vozes eram escutadas; e, por fim, elaboraram uma lista de 150 propostas que apresentaram ao Governo francês. Foi há apenas algumas semanas que, nos jardins do Eliseu, Macron recebeu pessoalmente as propostas da Convenção de Cidadãos para o Clima e anunciou que o seu executivo implementará 147 das 150 propostas apresentadas pelos cidadãos.
4. A proposta deste artigo é simples: Portugal deve organizar uma assembleia de cidadãos para decidir, de forma genuinamente democrática, como usar os fundos europeus de recuperação que aí vêm. Os participantes, seleccionados por sorteio, seriam convidados a desempenhar esta tarefa pelo Presidente da República (tal gesto tornaria clara a genuinidade e importância do processo). O Governo e o Parlamento estariam ambos representados ao mais alto nível, tanto no arranque como no acompanhamento dos trabalhos da assembleia de cidadãos. O processo decorreria entre Setembro e Dezembro deste ano. Os participantes seriam escolhidos por sorteio com base nos cadernos eleitorais e seriam remunerados pelo seu trabalho. As despesas necessárias a permitir a sua participação (por exemplo, deslocações e a contratação de prestadores de cuidados a crianças, idosos e outras pessoas que dependam dos participantes) seriam reembolsadas, independentemente do nível de rendimento e situação económica de cada um.
Discutiriam — porque não? — as propostas de António Costa Silva, mas também as de tantos outros indivíduos que seguramente tanto ou mais têm para contribuir. Escutariam os contributos dos “sindicatos, patrões, universidades, entidades da sociedade civil”, Governo, “Parlamento e partidos em geral, e parceiros económicos e sociais”, tal como o Presidente da República apontou ser importante fazer. E, crucialmente, ouviriam também — e com muito maior atenção e capacidade empática do que os membros da classe governativa alguma vez o poderiam fazer — todos os cidadãos que optassem por dar o seu contributo através de uma variedade de canais (presenciais e não-presenciais). Estes 150 portugueses seriam o canal através do qual todos nós nos expressaríamos, ficando os participantes na assembleia de cidadãos incumbidos de destilar e prioritizar as visões de todos os que desejassem fazer ouvir a sua voz.
Através de um processo deliberativo e genuinamente aberto, estes 150 portugueses identificariam propostas e prioridades para o uso deste “dinheiro [que] é de todos”. No final, a assembleia de cidadãos apresentaria publicamente as suas recomendações, comprometendo-se o Parlamento, o Presidente e o Governo a usá-las como base para o seu trabalho (obviamente sem abdicarem dos seus poderes).
5. Contrastemos esta visão com o que sabemos que, de outra forma, aí vem. As elites nacionais tomarão estas decisões por todos nós. Haverá ocasionais exercícios de consulta pública, é verdade, mas as escolhas que importam serão, quase todas elas, realizadas por umas escassas centenas (talvez dezenas?) de indivíduos habituados a circular pelos corredores do poder em Lisboa.
6. O apego das elites ao poder é um obstáculo importante a esta visão. No entanto, ainda mais perigosa é a desconfiança generalizada a respeito dos nossos co-cidadãos. Muitos — ao mesmo tempo que se dizem “orgulhosos de ser portugueses” — invocarão o fantasma da estupidez e ignorância dos cidadãos para poderem tomar semelhantes decisões.
Ora, décadas de experiências democráticas deste tipo realizadas um pouco por todo o mundo tornam claro que estes receios são infundados. Da Irlanda (onde o Parlamento irlandês constituiu uma assembleia cidadã para propor alterações constitucionais, algumas das quais já aprovadas) à Alemanha (onde, em Novembro, Wolfgang Schäuble — agora na sua capacidade de presidente do Parlamento alemão — recebeu um conjunto de propostas elaboradas por uma assembleia de cidadãos sobre como melhorar o funcionamento da democracia alemã), não faltam exemplos de casos onde cidadãos “comuns” fizeram um excelente trabalho ao lidar com questões políticas complexas. Para tal, basta ter um processo deliberativo bem estruturado e que permita aos participantes informar-se sobre as questões e temas envolvidos, bem como discutir e avaliar ideias num ambiente construtivo. Tal é a promessa destes métodos que, em Fevereiro de 2019, a região belga de Ostbelgien institucionalizou o uso permanente de painéis de cidadãos escolhidos por sorteio para complementar o trabalho dos deputados eleitos no Parlamento regional.
7. A classe governativa portuguesa depara-se, assim, com uma escolha. Pode, pela enésima vez, manter as decisões concentradas nas suas mãos. Ou pode, corajosamente, optar por simultaneamente revitalizar a democracia portuguesa e criar as condições para uma recuperação económica e social da qual todos seremos parte de uma forma genuína. Estou confiante de que os nossos governantes têm a visão e a audácia necessárias para fazer a escolha certa.