Enquanto o país nega, Evaristo mata
Os silêncios, as omissões, as relativizações, a secundarização e a manipulação mediática da morte de Bruno Candé Marques são sintomas do racismo estrutural, incapaz de mobilizar a comoção coletiva que envolva dimensão institucional perante a morte de uma pessoa negra.
A 25 de julho de 2020, em pleno dia, um homem branco sem licença de porte de armas matou um homem negro numa rua de Moscavide, às portas de Lisboa. A arma pertencera à polícia. Nesse dia, Evaristo Carreira Martinho, cidadão português branco, assassinou o ator Bruno Candé Marques, cidadão português negro, com quatro dos seis tiros que disparou. Mais de um mês depois do 25.º aniversário do assassinato de Alcindo Monteiro por neonazis, apenas por ser negro, eis que um homem é morto na rua por ódio racial.
Para quê referir-se a cor da pele do assassino e da vítima? – perguntar-se-ão genuinamente alguns e cinicamente outros Todos os homicídios de brancos contra negros e vice-versa terão pendor racista ? – interrogar-se-ão ainda outros. Se não vivêssemos numa sociedade estruturalmente racista, estas perguntas talvez fizessem sentido. Mas, com tudo o que se sabe sobre as circunstâncias do assassinato de Bruno Candé, estas perguntas não fazem sentido. Perante os testemunhos de quem assistiu à ameaça de morte e aos repetidos insultos racistas de Evaristo Martinho contra Bruno Candé ao longo dos três dias anteriores ao seu assassinato, não há dúvida de que as motivações do crime são claramente racistas.
Discutir se foi ou não racismo é uma tentativa desonesta de limpar um crime racista. Que a extrema-direita o faça, não surpreende, porque a sua estratégia é negar o racismo para o banalizar e, assim, normalizar a sua violência. Que largos sectores do espectro partidário do arco democrático, presos na quimera negacionista do racismo, também o façam, não surpreende mas choca. Que instituições, como a PSP, apesar das declarações públicas de um seu agente num canal de televisão em direito no local do crime, reproduzindo os testemunhos de populares sobre os insultos racistas do assassino, venham posteriormente negar a existência de racismo, é só inaceitável e suscita mais dúvidas ainda sobre a atuação da PSP perante crimes racistas.
Os silêncios, as omissões e as relativizações deste caso levantam várias questões: o que levou a PSP a emitir um comunicado de imprensa a negar a hipótese de racismo neste crime? Que elementos probatórios tinha para além dos recolhidos ali e que o seu próprio agente reproduziu publicamente? Com esta antecipação às conclusões da investigação a cargo da Polícia Judiciária, pretenderá condicionar o inquérito e seus resultados? Será que a PSP, em vez de ajudar a combater o racismo, está apostada em cimentar a narrativa da extrema-direita de que não há racismo em Portugal e, por extensão, também consolidar a ideia da sua ausência no seu seio?
Mais de 72h depois do assassinato, nenhuma instituição pública contactou a família de Bruno Candé – nem a própria PSP – para com ela articular coisas simples como onde está o seu corpo, a previsão da autópsia e libertação do corpo para a família, os procedimentos legais em situação de pandemia, ou simplesmente providenciar o necessário apoio psicológico e o natural encaminhamento jurídico da situação. Porquê? Onde esteve a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial? Se até em casos-limite como estes peca por falta de comparência, para que serve?
O que explica a reação tardia ou quase omissa das tutelas do Governo com responsabilidade direta ou indireta nesta matéria? Por que não foi possível sequer uma palavra – escrita ou dita – de conforto para a família e a comunidade deixando claro o repúdio pelo crime?
Como explicar o silêncio institucional das principais figuras dos órgãos de soberania diante de uma tragédia como esta, depois de tudo o que veio a público?
Como é possível que da tutela – que em tempos até falou em como seria crucial “desocultar o racismo” na sociedade portuguesa –, ou da sua secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, não tenha surgido uma palavra? Como explicar que até o Presidente da República, prolixo em distribuir afetos nos “momentos difíceis”, não tenha achado pertinente dirigir uma palavra sequer à família do Bruno Candé? Terão consciência os nossos responsáveis políticos que o seu silêncio pode ser lido pelas comunidades racializadas não só como abandono, mas sobretudo como a escolha do lado que as oprime? Os silêncios, as omissões, as relativizações, a secundarização e a manipulação mediática da morte de Bruno Candé Marques são sintomas do racismo estrutural, incapaz de mobilizar a comoção coletiva que envolva dimensão institucional perante a morte de uma pessoa negra.
Salvo dignas exceções, houve uma tentativa de construir uma narrativa coletiva sobre o “idoso” tresloucado que, por disfunção traumática, matou por acaso Bruno Candé, tal como podia ter morto qualquer um, afastando assim o teor racista e premeditado do crime.
O “trauma” individual de Evaristo é a trágica personificação de uma recusa coletiva em admitir a evidência de que o racismo que violenta e mata tem tudo a ver com o imaginário coletivo passado e presente da sociedade portuguesa. Quantos Evaristos ainda convivem connosco, em casa, no trabalho e na vida quotidiana? Quantas famílias não estão cheias de Evaristos que a história colonial pariu e continua a alimentar? São perguntas cujas respostas são de responsabilidade coletiva e que não se resolvem com uma estratégia de relativização ou negação do racismo. Evaristo Martinho faz parte desta larga franja da sociedade que ainda cultiva o orgulho de celebrar a barbárie do passado e está, portanto, muito disponível para repetir os mesmos horrores no presente. Incorporou o projeto de sociedade colonial que lhe foi incutido, em que as vidas negras nunca importaram.
Alguma comunicação social chafurdou na lama, dando espaço ao aviltamento da imagem de Bruno Candé, orquestrado pelas hordas digitais da extrema-direita chefiadas por André Ventura que replicou um post no Facebook, aparentemente de um perfil falso. Mesmo depois de saber que o assassino não só não se arrepende de matar Bruno Candé como “matou muitos como este”, o deputado da extrema-direita e seus acólitos investem ainda hoje no assassinato post-mortem da vítima, enquanto alguma imprensa insiste na imagem do “octogenário” desequilibrado mental, quase inimputável, para esvaziar o carácter racista do assassinato.
Os mesmos órgãos de comunicação social que sempre noticiam em prime time e destaque escaramuças que envolvam corpos negros no espaço público, foram incapazes de dar a mesma importância ao assassinato de um homem negro por motivos racistas. Crimes racistas no estrangeiro como os casos de Marielle Franco ou George Floyd abriram noticiários, mas a execução de Bruno Candé foi quase um fait divers de silly season.
O manto de silêncio institucional sobre este caso vai contribuir para normalizar a violência racial e esta normalização torna institucionalmente cúmplices do reforço do racismo quem apostar em desvalorizar a sua expressão e consequências.
Aliás, neste ‘país sem racismo’, as vítimas de racismo e tantas outras pessoas comprometidas com a igualdade já saíram quatro vezes à rua, este ano. Os milhares de pessoas, incluindo aquelas que sofrem o racismo na pele, que desfilaram nas ruas do país nos últimos meses são a esperança de que nenhuma maturidade democrática pode fazer concessões à normalização do fascismo e do racismo.
O medo da polarização política sobre a questão racial tornou-se numa patologia coletiva que se caracteriza pela afasia de uma elite política que, seja por adesão ideológica, seja por taticismo eleitoral, se recusa a ver a dimensão estrutural do racismo na sociedade portuguesa. Só que quanto maior for o seu silêncio perante a violência racista, maior será a sua responsabilidade em endossar as consequências.
Por andar repetidamente a incitar ao ódio e a negar o racismo, por convidar os racistas a saírem do armário em ‘contra manifestação’, o deputado fascista André Ventura é hoje o maior autor moral dos crimes racistas que ocorrem no país.
Enquanto o país continuar a negar a existência do racismo, teremos muitos Evaristos Martinhos dispostos a matar Brunos Candés, apenas por serem negros.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico