“Tu não viste nada em Hiroxima”
Na semana em que se cumprem 75 anos sobre o bombardeamento de Hiroxima e Nagasáqui, a nuvem-cogumelo e a sumptuosidade voltam a habitar o imaginário comum. Desse dia, resultaram cerca de 200 mil mortes, muitas imediatas, muitas nas horas seguintes, mas também nos anos e gerações seguintes.
Uma após a outra, as explosões sucedem-se na tela, brilho intenso de luz sobre o preto e o branco. O filme é Dr Strangelove e a bomba H acaba de ser lançada, cavalgada com chapéu de cowboy. Vera Lynn canta no fundo sobre sunny days, nesse céu onde subitamente outro sol surge glorioso. Elegante, majestoso. ”Dez mil graus na Praça da Paz. (...) A temperatura do Sol na Praça da Paz”, dir-nos-ia Emmanuelle Riva em Hiroshima Mon Amour.
Antes de se intuir sequer qualquer contexto sobre o sucedido, as imagens da explosão no porto de Beirute esta semana inundaram o Twitter e demais redes sociais. De todos os ângulos possíveis, a sequência é sempre a mesma: a história banal do incêndio portuário, a coluna de fumo, os flashes, e então — surpresa — uma gigante nuvem-cogumelo, de manto branco, denso coração laranja, forma-se de repente no ar. Segue-se a onda de choque, cai a câmara, gritos e logo a câmara. Não pode deixar de filmar. Não podemos deixar de ver. Entre a sequência final do filme de Kubrick e as notícias de Beirute, pouco desfasa. Um exército de smartphones e um pouco de Internet substituem o cinema e mostram-nos, também, como nos podemos “deixar de preocupar e amar a bomba” .
Na semana em que se cumprem 75 anos sobre o bombardeamento de Hiroxima e Nagasáqui, a nuvem-cogumelo e a sumptuosidade, o espectáculo ímpar da explosão, voltam a habitar o imaginário comum. Desse dia, resultaram cerca de 200 mil mortes, muitas imediatas, muitas nas horas seguintes, nos dias seguintes, de colapso corporal pelo dano nuclear, nos anos seguintes e gerações seguintes. Desse dia, a imagem que sobrevive mantém-se, icónica, elegante e majestosa, a nuvem-cogumelo a elevar-se no ar.
Da destruição da pedra e dos corpos, pouco ficou na memória dos que deste lado lembram e aprendem a lembrar. Parte devido aos esforços americanos de confiscar e apagar a memória visual do outro lado, das fotografias de Wilfred Burchett ou Yoshito Matsushige às filmagens de Akira Iwasaki. Outra, plasmada no desastre de Beirute, pelo fascínio que a civilização desenvolveu pela sua ascensão. A nuvem-cogumelo não é só símbolo de destruição e arriscaria a dizer que nem o chega a ser de todo. A explosão a grande escala, a gigantesca nuvem a elevar-se no ar, a luz expansiva, transforma a criação humana num espectáculo de tonalidades divinas, extrapolando-se o fascínio simples pelas chamas e fogos de artifício a uma assimilação a um novo sol.
A imagem do progresso, na iconografia global, tende à da grandiosidade. O progresso só se admite a crescer: “Sempre a crescer, sempre a subir…até apagar o Sol!”. Tal vendaval benjaminiano que arrasta o anjo de Klee “imparavelmente para o futuro, (... ) enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu”. A nuvem-cogumelo é então símbolo de fim da história, não o de Fukuyama, mas de uma história em que a humanidade se subjuga à natureza e, por fim, passa a dominá-la no seu mais íntimo elemento, na sensível intimidade dos átomos. Na nuvem que ascende não há dor, só vitória.
Não será por isso acaso que Peter Watkins não tenha chegado a estrear War Game, documentário de 1965, na BBC. Encomendado pela emissora britânica com o intuito de retratar um possível conflito nuclear no Reino Unido, acabou censurado por ser “demasiado aterrorizador” e poder causar pânico generalizado no público. No filme de Watkins não há grandes panorâmicas de explosões em Londres, nuvens-cogumelos ou Big Bens destruídos. Em vez disso, dá-se um relato pormenorizado, cronológico, do real efeito de um bombardeamento nuclear. A onda de choque, a cegueira instantânea, as tempestades de fogo, a destruição generalizada, a doença que alastra e o fim da ordem social.
É essa a realidade além da bomba que ficou em Hiroxima e Nagasáqui há 75 anos, nos tantos outros campos do pós guerra, mas também nas minas de Serra Pelada, no delta do Níger e em outras regiões onde mesmo sem explosão, o vendaval só deixa ruínas. É esta a realidade em Beirute neste momento em que, da mesma forma que a nuvem-cogumelo se esfuma, o nosso interesse pelo pós-explosão o faz também. À vitória de egoísmo individualista da bomba, urge o ressurgir do contra ataque da comunidade, onde um mundo globalizado só é possível se a cooperação e a empatia entre povos se sobrepuser ao fascínio cego na vontade imparável do progresso. Só aí, voltando a Benjamin, pararemos “para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído”. Mas para isso, teremos de, como Emmanuelle Riva, ter visto tudo de Hiroxima.