E se partíssemos tudo?
Não se creia que o episódio do Novo Banco é só mais um que o povo português, sereno, submisso, impotente, vai tolerar, porque não tem capacidade, suscetibilidade, para ser duro. As pessoas estão fartas.
Ao ler o PÚBLICO do passado dia 28 de Julho, ficámos a conhecer uma certa forma de fazer negócios. Resumindo a notícia: no dia 10 de Outubro de 2018, o Fundo Anchorage comprou 13.000 imóveis ao Novo Banco por 364 milhões de euros. A avaliação dos imóveis nas contas do banco era de 631 milhões de euros. Ou seja, os imóveis foram vendidos ao Fundo em causa com um “desconto” de 42%. Menos 267 milhões de euros.
O Novo Banco considerou, nas suas contas, o valor de 267 milhões de euros como prejuízo. E pediu ao Fundo de Resolução – um Fundo em que o montante alocado a necessidades do Novo Banco é constituído, em 80%, por dinheiro do Estado (ou seja, dos contribuintes) – que pagasse 260 milhões de euros deste prejuízo. O Novo Banco fez mais: emprestou ao comprador dos referidos imóveis – o Fundo Anchorage – o dinheiro para os comprar, tendo as casas por garantia. Portanto, qual o risco do comprador? Comprou por quase metade do preço as casas, com dinheiro emprestado pelo próprio vendedor para o efeito. Qual o risco do vendedor? Vendeu por quase a metade do preço e compensou o prejuízo com dinheiro do Fundo de Resolução, essencialmente, constituído com dinheiro dos contribuintes. Quem são os compradores? Não fazemos a mínima ideia – podem ser pessoas ligadas ao Novo Banco, ligadas a empresas que compraram o Novo Banco, pode até ser o Rato Mickey. É que atrás do nome Fundo Anchorage, pela legislação em vigor, é impossível saber quem são, no concreto, os seus beneficiários.
Podemos achar que esta situação é completamente anormal. E é. Mas convém dizer que esta anormalidade é uma quase normalidade no sistema financeiro. O sistema está cheio de expedientes deste género: compradores que compram com risco zero ou próximo do zero; vendedores que vendem com risco zero ou próximo do zero; contribuintes que pagam a fatura. O sistema financeiro está habituado a internalizar os lucros e a externalizar os prejuízos. Quando há lucros, banqueiros, donos de bancos, empresários, milionários, e mesmo espertalhões recém-chegados, beneficiam. Milhões, não tostões. Quando há prejuízos, Estados e contribuintes pagam. Milhões, não tostões.
Àqueles de nós que dependemos do esforço do trabalho e não de rendas, é levado pelo Estado, diretamente, entre IRS e Segurança Social, todos os anos, 20% a 50% do rendimento (a que se soma o que se paga de impostos indiretos). Parte importante do nosso tempo de trabalho, do resultado do nosso esforço, serve para o Estado pagar a bancos que pagam a milionários para serem ainda mais ricos.
Só para falar em episódios recentes, é ver a história da crise financeira internacional que se iniciou em 2008 (e vale a pena lembrar os esquemas desonestos que o sistema financeiro praticou e que provocaram essa crise, demonstrando a relação mais que efetiva entre sistema financeiro e economia real).
É também o que se passa, provavelmente, com esta lamentável história que a notícia do PÚBLICO revela. Tudo legal, claro. Porque a lei nem sempre está do lado dos lesados. Pode até dizer-se que a lei serve, muitas vezes, os infratores – a realidade dos factos demonstra-o.
Muito do que disse até agora são generalizações. E, como todas as generalizações, estas pode provocar uma leitura injusta da realidade.
Quer dizer: há banqueiros honestos, há milionários honestos, há juristas cuja tarefa na vida não é andar a fintar o sentido da justiça.
Todavia, pode haver um sentimento de raiva – é esta a palavra – quando sabemos destas vergonhas. Raiva, sim, por verificarmos que não nos respeitam, a nós, cidadãos que não andamos na roda viva das bolsas, dos bancos, dos hedge funds, dos mercados primários e secundários, etc. Porque nos dizem que vivemos numa sociedade democrática, concorrencial, socialmente responsável.
Não podemos continuar a esperar que o sistema de governo e de justiça – sistemas que representam a soberania que, dizem, reside no povo (!) – demorem anos, dezenas de anos, a agir, por falhas dos próprios sistemas, por incúria ou por conivência. Por vezes, estes sistemas parecem máquinas de fazer esquecer. Nas demoras, delongas, nas esperas, vem o olvido e volta-se ao ramerrão do dia a dia entre o horário de trabalho, as preocupações com as necessidades da família, as contas e as tentativas de ter alguns momentos de relaxamento para lá do esforço excessivo, face a rendimentos manifestamente baixos, para a maioria da população.
E se partíssemos tudo? Se agarrássemos em chicotes, se fizéssemos como Jesus Cristo ao expulsar os vendilhões do Templo? Se em vez de procurar reformar um sistema podre o destruíssemos? Se em vez de reformas fizéssemos a revolução? Se necessário, uma revolução sangrenta?
Não, eu não penso assim. Mas quero salientar este pensamento. Quero salientá-lo porque os excessos, os abusos do sistema financeiro estão a minar gravemente as instituições internacionais e nacionais – e a aumentar o número daqueles que pensam assim. Que encontram até uma certa beleza e entusiasmo ao pensar assim. A erosão que está a ser provocada nos Estados, nos cidadãos, nas economias, nas sociedades, está a gerar de forma crescente núcleos de revolta, de raiva, de extremismo, organizados em torno de projetos políticos alternativos.
Estes núcleos não são, exclusivamente, alimentados por verdades que revelam atitudes miseráveis. São, também, alimentados por desinformação, fake news, deepfake, enfim, vários sistemas de intoxicação na comunicação, promovidos, deliberadamente, por Estados, entidades e grupos interessados em desestabilizar.
As instituições estatais têm revelado uma enorme incapacidade em responder à justa demanda dos cidadãos pelas reformas que possam impedir os desmandos a que temos estado sujeitos. E é face a esta incapacidade, na qual os partidos dominantes nos sistemas democráticos têm evidentes responsabilidades, assim como as instituições privadas mais influentes, é face a esta incapacidade que crescem organizações que se alimentam do ressentimento, do ódio, da raiva, criando propostas alternativas.
Ainda por cima, a crise sanitária que estamos a viver amplia o desânimo e os sentimentos negativos. Com a Ultra Depressão (sim, é mais que uma Grande Depressão) associada, nos próximos anos, a insatisfação, frustração, pânico, perda de emprego, de rendimentos e diante de todos os problemas pessoais e sociais inerentes.
Estamos no Verão. Portugal quer ir a banhos. Mas este é um momento chave para as instituições democráticas.
O momento em que se revelam grandes líderes ou a sua ausência. Um momento crítico para evitar a predação de parte importante dos eleitorados insatisfeitos por forças extremistas.
O momento em que tem de haver quem nos convença que não é preciso partir tudo, quem nos convença que o sistema é reformável, a bem da maioria, da cidadania, da equidade.
Não se creia que este é só mais um episódio que o povo português, sereno, submisso, impotente, vai tolerar, porque não tem capacidade, suscetibilidade, para ser duro. As pessoas estão fartas. E as maiorias (e grandes minorias) não veem nas discussões palacianas, nos temas fraturantes, nos grandes debates intelectuais, elementos que correspondam ao seu pensar e sentir, a uma melhoria efetiva das suas condições de vida e dos sistemas públicos de justiça, de democracia. Sistemas que impeçam e punam comportamentos lesivos da comunidade, como aquele exemplo do Novo Banco com que comecei este texto, entre tantos outros.
Mais ou menos visíveis, andam por aí muitos predadores do bem comum. E os sistemas democráticos não estão a demonstrar capacidade para proteger os cidadãos das dinâmicas de predação. É aí que se começa a perguntar: será que a democracia funciona? Isto, esta confusão em que vivemos, é que é a democracia? E se partíssemos tudo?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico