Para uma reinvenção da política cultural
Quando a generalidade das condições de criação, produção, distribuição, recepção e participação se alterou substancialmente nas últimas décadas, não é mais possível continuar a pensar a arte e a cultura como se nada se tivesse passado.
Como sabemos, a política cultural é uma invenção francesa. Ela surge em 1959 na sequência da sugestão do general de Gaulle ao primeiro-ministro Michel Debré para que integrasse no seu governo a figura de André Malraux, dado que este daria grande prestígio ao mesmo (tempos longínquos esses, em que se reconhecia a dimensão de algumas personalidades como forma de prestigiar a acção governativa).
Surge, desta forma, criado para o grande intelectual francês, o Ministério dos Assuntos Culturais (MAC), tendo como missão “tornar acessíveis as obras capitais da humanidade e, sobretudo, da França, ao maior número possível de franceses”.
Sem termos como propósito fazer uma análise exaustiva da política cultural francesa ao longo de 60 anos, podemos distinguir duas outras grandes personalidades que reconfiguraram o desígnio inicial do MAC, centrado no conceito de acção cultural: Duhamel (que implantou a noção de desenvolvimento cultural) e Jacques Lang (que introduziu o conceito de vitalidade cultural).
O sistema cultural francês teve, nos seus múltiplos aspectos, influência decisiva em Portugal. Não só pela proximidade entre as duas culturas, como pela necessidade de implantação de uma acção política consequente no pós-25 de Abril a que o “modelo” francês dava, à falta de outro, respostas satisfatórias, apontando caminhos com algum grau de previsão quanto às suas virtudes e eventuais problemas.
Entretanto, a partir dos anos 90 do século passado, os modelos anglo-saxónicos começam a suscitar interesse, completando ou confrontando o modelo francês prevalecente. A perda de influência do sistema cultural francês acentuou-se, e, com a globalização da própria cultura, novas formas de acesso a bens culturais foram emergindo.
Em Portugal, com o afirmar da democracia e da aproximação à Europa, as instituições culturais começaram a fazer o seu caminho, com o Estado a controlar ora mais ora menos o sector, e os orçamentos destinados à cultura a variarem consoante as possibilidades económicas do país e a capacidade e a influência política dos ministros que tutelavam a área da cultura (e, mais recentemente, à semelhança, do que aconteceu em França, também a comunicação).
É possível, através das respectivas dotações orçamentais, extrair ilações sobre a importância social e política que os sucessivos governos têm atribuído à área. Se há cerca de 20 anos a percentagem destinada à cultura (tendo em conta o PIB) se situava na ordem dos 0,60%, neste momento ela situa-se próximo dos 0,25%. Perante esta realidade, está tudo dito. É certo que as autarquias têm contribuído financeiramente (nalguns casos até substancialmente) para o desenvolvimento do sector, mas também é certo que os equipamentos se multiplicaram (e ainda bem!), funcionando o sector cultural com verbas tão exíguas que não lhe é permitido fazer face ao básico (veja-se o caso de muitos museus que trabalham no limiar da sobrevivência, ou a fragilidade laboral de todo um sector artístico que a pandemia veio dramaticamente por a nu).
Numa área, e num ministério, em que por ausência de planeamento a médio ou a longo prazo as tutelas assumem uma transitoriedade inaudita (só no Governo anterior foram três ministros), os resultados têm sido escassos ao longo dos anos, consumindo-se a discussão em questões de somenos importância sem que alguma vez tenha sido estabelecido um verdadeiro plano para o país. É também, e infelizmente, apanágio dos novos ministros fazerem tabula rasa daquilo que foi feito pelos anteriores, procurando o seu lugar na História para, talvez, ultrapassarem o síndrome Malraux, Lang, ou, até mesmo, Manuel Maria Carrilho. Constatamos que muito governantes encaram a cultura como uma “flor na lapela” sem procurarem efectivamente resolver os seus problemas ou resolvendo-os sem a competência desejada. A passagem de alguns políticos pelo Ministério da Cultura serve, somente, para a conquista de alguma visibilidade, uma vez que a diminuta influência política que detêm não lhes permite exigir um orçamento que possibilite um trabalho consistente e continuado.
Surgiu, recentemente, pelo cunho de António Costa Silva (personalidade independente que nos merece grande consideração) um Plano a dez anos para a recuperação económica do país. Excelente iniciativa: finalmente temos um Plano.
Contudo, analisando o que nesse Plano diz respeito à cultura, verificamos que, das 121 páginas que ao todo tem o documento, somente três lhe são dedicadas. Segundo já divulgado publicamente pela actual ministra da Cultura, esse Plano terá sido articulado com o seu Ministério.
Infelizmente estas três páginas e as acções nelas propostas não revelam grande ambição e não preconizam nada de muito transformador para a área da cultura. E se a essas três páginas corresponder percentagem orçamental equivalente, então estamos arrumados.
Mas talvez o problema não esteja no Plano, dado que António Costa e Silva me parece um homem bem-intencionado. Talvez o problema esteja no conservadorismo com que o sector é encarado pela generalidade da classe política e na diminuta importância que lhe é atribuída. Não se podem resolver novos problemas com soluções do passado. Já não estamos no tempo da acção cultural e do Estado tutelar. Estamos no tempo da Internet, da cultura global e mediada, do digital, do online, das comunidades portáteis, das ligações entre a arte, a ciência e a tecnologia e da economia da criatividade. Estamos, também, num tempo que deve contar com o desejo de participação de milhares de jovens ávidos de fazerem ouvir a sua voz no que respeita à construção social de um mundo melhor, e no qual a cultura é factor determinante (voz que, infelizmente, por força das circunstâncias, tem estado tão limitada). Não ter em consideração essa legítima aspiração de uma nova geração é tão grave como perspectivar uma biblioteca só com os livros que lemos ou com os que leram os nossos pais.
É necessário perspectivar o futuro e não remendar o passado. São necessárias novas ideias e resolver o crónico problema orçamental. Mas, para isso, é mesmo preciso reinventar a política cultural.