Um novo algoritmo para a solidariedade europeia?
Todas as sequências históricas para inventar um novo algoritmo político são únicas. Mas podemos ter a certeza de que, desta vez, se está a fazer história europeia. Está a ser inventado um novo instrumento de soberania europeia para permitir à Europa moldar o seu futuro com outra capacidade de projeção.
Foi preciso uma tragédia mundial chocante com a pandemia covid. Foi preciso a mais profunda recessão europeia desde a Segunda Guerra Mundial. Foi preciso ver um tornado destruindo muitas empresas e empregos viáveis, fragmentando o mercado único europeu e abalando os pilares da integração europeia. Na madrugada de 21 de julho, no fim da segunda reunião mais longa da sua história, o Conselho Europeu, com os seus 27 Estados-membros, conseguiu concertar-se sobre um novo algoritmo para a solidariedade europeia. Para lidar com ameaças sistémicas com mais coesão interna, mas também para preparar o caminho para uma transformação de longo prazo respondendo às alterações climáticas e digitais.
Após um longo e complexo debate que envolveu todas as instituições políticas europeias e nacionais, este novo algoritmo para a solidariedade europeia foi forjado com as seguintes características:
– criação dum Fundo de Recuperação para responder à crise covid com 750 mil milhões de euros, quase duplicando a capacidade orçamental da UE, com vista a conter a pandemia e a recessão;
– funcionamento deste Fundo através do quadro institucional do orçamento da UE, garantindo o seu acompanhamento e escrutínio democrático e o seu alinhamento com as prioridades de longo prazo já definidas: a aplicação dos objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o Acordo Verde Europeu e o Pilar Europeu dos Direitos Sociais;
– possibilidade deste Fundo actuar por via não só de empréstimos mas também de subsídios, proporcionando uma redistribuição a favor das regiões, sectores, grupos sociais e países mais afetados;
– financiamento deste Fundo por uma emissão comum de dívida europeia conduzida pela Comissão Europeia, e beneficiando assim dos custos mais baixos e vantajosos da UE. Trata-se, portanto, dum embrião de Tesouro Europeu e que vai gerir o primeiro défice público europeu;
– respaldo desta emissão de dívida com o aumento do limite máximo dos recursos próprios da UE e com a criação de novas fontes fiscais: plásticos poluentes, transação de direitos de emissão, taxa de carbono fronteiriça, um imposto digital e, possivelmente, um imposto sobre as transações financeiras.
Por conseguinte, estamos muito longe do algoritmo da solidariedade europeia inventado há dez anos durante a crise da Zona Euro: corrigir o comportamento dos países utilizando a violência dos mercados financeiros especulando contra a sua dívida para forçá-los a adotar reformas estruturais que reduzissem salários, pensões, educação e proteção social. Isto, ao mesmo tempo que um Mecanismo de Estabilidade Europeia emprestava o mínimo necessário para os manter à tona de água. Uma vez que esta receita de solidariedade europeia trouxe uma recessão dupla para toda a Europa e desencadeou reações anti-europeias em múltiplos países, parece que a lição foi aprendida: não repetir o mesmo.
Mas não há acordos perfeitos. Subsistem várias deficiências e inconsistências:
– o controlo da conformidade com o Estado de direito para beneficiar dos fundos da UE continua a ser bastante ambiguo e falível nos seus procedimentos;
– os reembolsos para os Estados contribuintes líquidos foram ampliados para lhes dar uma compensação negocial, enfraquecendo a coerência orçamental;
– vários programas comunitários, cruciais para o futuro da UE, sofreram cortes severos: Horizonte, Erasmus, Digital, Garantia infantil, Saúde, Investimento UE, Mecanismos de Transição Justa – algo que enfrentará a reação justificada do Parlamento Europeu, o qual utilizará as suas competências de co-decisão para tentar alterar o acordado;
– o teto mais elevado para os recursos próprios da UE ainda deverá ser confirmado pelos Parlamentos Nacionais e será certamente reafirmado pelo Parlamento Europeu como uma pré-condição para dar o seu consentimento a todo este novo esforço orçamental.
Assim, muitos novos desenvolvimentos ainda estarão em jogo para que este novo algoritmo possa ser posto em movimento.
Paralelos históricos têm sido traçados. Momento inspirado de Hamilton na história americana, já que trava as dívidas nacionais com a criação duma dívida e impostos federais? Momento inspirado de Roosevelt nos anos 30 do passado século, porque responde a uma recessão com grandes programas de investimento e emprego e o reforço da segurança social, ampliando o orçamento federal? Novo Plano Marshall, porque visa reconstruir e distribuir, contando não só com empréstimos mas também subsídios?
Todas as sequências históricas para inventar um novo algoritmo político são únicas. Mas podemos ter a certeza de que, desta vez, se está a fazer história europeia. Está a ser inventado um novo instrumento de soberania europeia para permitir à Europa moldar o seu futuro com outra capacidade de projeção.
Presidente da FEPS, Fundação Política Europeia; ex-ministra e ex-eurodeputada
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico