Os ziguezagues na regulação do arrendamento em Portugal
Num momento em que se antecipa o fim do crédito fácil e uma crise económica com consequências ainda imprevisíveis, é importante criar condições que favoreçam o bom funcionamento do setor de arrendamento urbano.
O setor de arrendamento privado é uma parte importante do mercado de habitação de muitos países. O peso deste setor varia substancialmente de país para país. É particularmente elevado em países como a Suíça (51%), a Alemanha (41 %) ou a Dinamarca (39 %) onde uma parte substancial da população vive em habitação arrendada com um valor de mercado (Eurostat, 2018). Numa situação intermédia temos Portugal, onde um em cada cinco portugueses (20% do total da população) vive numa habitação que é arrendada a particulares. De acordo com o INE (2011) a maior parte dos portugueses, 73% do total, vive em casa própria.
Apesar do sector privado ser muitas vezes encarado como um sector dominado pelas forças de mercado, uma vez que as habitações são efetivamente de propriedade privada e a alocação dos imóveis é feita, por norma, com base nas dinâmicas da oferta e da procura, na realidade, a intervenção do Estado está longe de se encontrar ausente, e tem um papel determinante na proteção dos inquilinos e da respetiva relação contratual com os arrendatários.
O modo como o setor de arrendamento urbano é regulado e como equilibra os diversos interesses dos inquilinos e arrendatários, (por exemplo em termos da duração dos contratos ou dos valores das rendas), tem influenciado a evolução e a atratividade do setor. Em Portugal a evolução do mercado de arrendamento privado tem sido marcada por um gradual declínio desde os anos 70. Só entre 1981 e 2011, o setor de arrendamento privado passou de 40% para 20% do total do stock habitacional, o que significou uma redução de 1.074.590 para 545.710 fogos (INE 2012).
As sucessivas reformas do Regime de Arrendamento Urbano contribuíram para a ‘construção’ de um mercado de arrendamento dual ou bipolar, constituído, por um lado, por contratos antigos celebrados antes de 1990 e com uma duração indeterminada onde prevalecem os baixos valores de renda. Por norma são imóveis degradados, com necessidades de reparação, e com uma população mais idosa. Por outro lado, e no extremo oposto, está o segmento dos novos contratos de arrendamento com valores de renda significativamente elevados, sobretudo em áreas de grande procura turística, maior pressão urbana e com um mercado laboral mais dinâmico, como o da área metropolitana de Lisboa ou do Porto.
Com um sistema de crédito menos conservador, e antes da crise financeira global de 2007, com incentivos legais e financeiros à compra de habitação em detrimento do arredamento, Portugal (com a Espanha, a Irlanda ou o Reino Unido) faz parte do grupo dos países com uma maior volatilidade nos preços da habitação. No outro extremo estão os países caracterizados por um sistema de crédito mais conservador e com um mercado de arrendamento maior e melhor regulado como é o caso da Alemanha ou da Áustria. Nestes países o mercado de arrendamento parece atuar como uma válvula que reduz as pressões do mercado imobiliário, mitigando, por consequência, os riscos sistémicos de bolhas imobiliárias.
Em Portugal, nas áreas onde o aumento exponencial dos preços das rendas e do valor da compra das casas deixou de ter por referência os salários das famílias, incluindo o dos trabalhadores integrados no setor de serviços, a divergência entre os valores das rendas antigas e dos contratos celebrados mais recentemente tornou-se perturbadora.
E é importante lembrar como chegámos aqui, pelo efeito das políticas públicas que se foram sucedendo ao longo das últimas décadas. Nomeadamente:
- pelo efeito da opção do congelamento das rendas, que foi alargada a todo o país nos anos 1970, quando nos países da Europa Ocidental se introduzia uma nova geração da regulação das rendas, mais branda e com uma maior rentabilidade para os senhorios;
- pelo efeito de uma legislação de arrendamento urbano que só a partir dos anos 1990 passou a permitir a celebração de contratos de arrendamento a prazo, nessa altura por um período mínimo obrigatório de 5 anos.
De registar o insucesso das reformas de arrendamento urbano que se seguiram. Da reforma de 2006 (Lei 6/2006), que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano, propondo a atualização faseada das rendas antigas através do acesso a um subsídio à renda que ficou dependente da realização das obras de reabilitação dos edifícios e da avaliação do coeficiente de conservação dos imóveis. Uma reforma que no período pré-crise financeira global de 2007 teve uma fraca adesão dos senhorios como, de resto, ficou provado com o recenseamento geral à população e habitação de 2011. Os resultados demonstram que em 2011, 56% do total dos contratos de arrendamento eram de duração indeterminada, sendo os restantes contratos com prazo certo e com renda apoiada (respetivamente, 18% e 8% do total). Os resultados dos censos de 2011, mostram ainda que 34,5% do total dos alojamentos arrendados em Portugal tinham um contrato de arrendamento anterior a 1991, e uma renda média da ordem dos 100 euros. Mostram ainda que 15% do total dos alojamentos arrendados no setor privado mantinham, em 2011, uma renda simbólica igual ou inferior a 35€ mensais (INE, 2011).
No município de Lisboa, a proporção de alojamento de arrendamento privado era equivalente a 36% do total dos alojamentos clássicos de residência habitual (um total de 100,241 fogos). Cerca de metade do total dos alojamentos de arrendamento privado tinham um contrato de duração indeterminada (equivalente a 55,643 fogos) e apenas 28% do total (isto é, 28,505 fogos) um contrato com prazo certo. Isto explica o impacto que a Lei 31/2012, que procedeu à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano, teve no município de Lisboa. Recorde-se que a reforma do regime de arrendamento urbano de 2012, que foi uma das exigências da troika no âmbito do “Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica” veio ampliar as condições ao abrigo das quais passou a poder ser efetuada a renegociação de arrendamentos habitacionais sem prazo, a limitar a possibilidade de transmissão do contrato para familiares em primeiro grau e a eliminar gradualmente os mecanismos de controlo das rendas. Contudo, no caso dos contratos anteriores a 1990, salvaguardou a situação dos arrendatários com idade igual ou superior a 65 anos, deficiência com grau de incapacidade superior a 60% e com carência económica.
Ao longo dos últimos anos, o Governo, pressionado pelas associações do sector, preferiu alargar o período de transição das rendas (de 5 para 10 anos), ao invés de começar a pagar o subsídios de apoio à renda no caso dos inquilinos com provada carência económica, mantendo o ónus em desfavor dos senhorios que continuam a ser responsáveis (e não o Estado) por garantirem o direito à habitação dessas famílias.
Com a Lei n. 13/2019, o prazo mínimo de arrendamento para habitação própria e permanente passou a ser de 1 ano, repondo-se o limite mínimo para a duração dos contratos de arrendamento com prazo certo que a Lei de 2012 tentou excluir. Também, no âmbito da denúncia pelo senhorio de contrato de duração indeterminada – especificamente para a realização de demolição ou obra de remodelação ou restauro profundo que obrigasse à desocupação do locado-, passou a não ser possível o senhorio denunciar o contrato quando as características do locado se mantiverem e for possível manter o arrendamento.
No momento presente, em que se discutem os impactos da covid-19 no mercado do arrendamento urbano, e em que o presidente da CML, Fernando Medina, reconhece que o AL ocupa um terço do centro histórico da cidade, a autarquia avança com um programa de apoio à reconversão de habitações em regime de alojamento local para o arrendamento a custos acessíveis por três a cinco anos. O programa Renda Segura em que os representantes públicos parecem mais preocupados em suspender as regras do neoliberalismo (para salvar o sistema de si próprio) do que a promover uma verdadeira reforma do mercado de arrendamento urbano adaptada à realidade económica e social do país.
O Governo que se prepara para apoiar os programas municipais que irão arrendar casas a proprietários de alojamento local, imóveis desocupados ou prédios livres (no caso da Renda Segura, o município de Lisboa irá pagar 800 euros mensais por um T2 por um período por 3 a 5 anos), deverão tentar explicar aos senhorios com contratos antigos e vinculísticos, que mantêm rendas baixas há várias décadas, porque razão os seus inquilinos em situação de carência económica não são elegíveis para os subsídios de apoio à renda.
Tal desproporcionalidade no tratamento de senhorios levanta não só um conjunto de questões de natureza ética e de justiça social como impede uma reforma estrutural do setor como a que tem sido aplicada noutros países europeus onde têm sido aplicados dois tipos de medidas principais. Por um lado, o pagamento de subsídios à renda no caso de famílias com carência económica. Por outro lado, a definição de tetos ao valor máximo no caso das novas rendas em função da localização, idade e qualidade dos imóveis. A aplicação deste conjunto de medidas em Portugal poderia favorecer a convergência entre as rendas antigas e as rendas recentes, com vista a uma progressiva estabilização dos valores das rendas no setor de arrendamento de longa duração.
Num momento em que se antecipa o fim do crédito fácil e uma crise económica com consequências ainda imprevisíveis, é importante criar condições que favoreçam o bom funcionamento do setor de arrendamento urbano, para que este possa aumentar e assumir-se como uma alternativa habitacional duradoura não só no centro das principais áreas metropolitanas, mas na generalidade das cidades portuguesas onde é necessária uma maior mobilidade laboral dos trabalhadores e uma maior proximidade entre os locais de trabalho e de residência.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico