Desafios na década da mente
Hoje, 22 de julho, celebra-se o Dia Mundial do Cérebro. Durante os últimos 20 anos, percebemos que o cérebro humano, mesmo após maturação, é muito mais mutável e adaptável do que originalmente se pensava e há agora um novo olhar dirigido para a mente como um todo.
Os neurónios são como misteriosas borboletas da alma, cujo bater de asas, quem sabe, esclarecerá um dia o segredo da vida mental
Ramón y Cajal (1852-1934), neuroanatomista espanhol, considerado o pai da neurociência moderna
A 22 de julho celebra-se o Dia Mundial do Cérebro, por proposta da Federação Mundial de Neurologia em 2014. O cérebro, órgão que continua a ser um dos mais complexos e fascinantes do corpo humano. Inspira poetas e filósofos, enlouquece artistas, desafia cientistas e mantém uma aura de mistério que lhe confere estatuto e presunção. Rege-se por mecanismos intricados que controlam o movimento e interação com o mundo, a respiração, a linguagem ou cálculo, processa sentidos, gere emoções, permite-nos idealizar idas à lua e a Marte, ou criar obras de arte.
O sistema nervoso é intrinsecamente complexo, composto por unidades fundamentais como os neurónios e células gliais, que comunicam através de sinapses. Os vários tipos de células organizam-se em circuitos e formam redes que, no seu conjunto, geram e controlam comportamentos e emoções.
As neurociências têm conhecido progressos tecnológicos impressionantes, que nos permitem começar a compreender o que está na origem daquilo que nos distingue enquanto indivíduos, e que vai além da informação genética. Este conhecimento permite-nos criar formas de inteligência artificial, que usam a capacidade de computação cerebral nas mais variadas tarefas.
Durante os últimos 20 anos, percebemos que o cérebro humano, mesmo após maturação, é muito mais mutável e adaptável do que originalmente se pensava e há agora um novo olhar dirigido para a mente como um todo, o resultado das funções cerebrais e da interação deste com o exterior. Este novo paradigma deu origem ao Manifesto, assinado por dez neurocientistas em 2007 na conceituada revista Science, instituindo a Década da Mente de 2012 a 2022. Esta iniciativa tornou-se global em 2009, envolvendo cientistas de todo o mundo, e tem como objetivo concentrar esforços e recursos na compreensão da mente de uma forma interdisciplinar, integrando as ciências cognitivas, medicina, neurociências, psicologia, matemática, engenharia, ciências sociais, biologia de sistemas, computação e robótica.
Este esforço foca-se em quatro grandes eixos:
1) Compreensão dos aspetos fundamentais de funcionamento cerebral, como a consciência, a memória ou os sonhos, funções que constituem ainda grandes desafios;
2) Identificação de novas estratégias que permitam otimizar o diagnóstico, terapêutica e reabilitação de doenças neurológicas e psiquiátricas;
3) Modelação dos processos mentais, permitindo a criação de modelos computacionais que reproduzam, melhorem e prevejam o funcionamento cerebral, com novas aplicações tecnológicas, em todas as áreas do conhecimento;
4) Investimento na educação em neurociências, com o objetivo de ampliar as redes de formação e promover a criação de programas específicos nas escolas por forma a desenvolver qualificações na área.
Tem havido progressos consideráveis nas técnicas de imagiologia cerebral, sobretudo com o aparecimento da ressonância magnética funcional (do inglês functional magnetic resonance imaging, ou fMRI), capaz de detetar variações no fluxo sanguíneo em resposta à atividade neuronal. Desta forma, consegue-se ter acesso ao cérebro integral em funcionamento, através da deteção de alterações na atividade de zonas cerebrais específicas, quer em repouso quer no decorrer de diversas tarefas, como, por exemplo, de memória, de reconhecimento facial, audição de música, leitura, jogos.
Técnicas anteriores como o electroencefalograma (EEG) já permitiam detetar alterações de atividade elétrica cerebral, sendo cruciais no diagnóstico de epilepsia, alterações de sono ou efeitos da anestesia, mas a análise é feita sobretudo na zona cortical (superfície cérebro) e sem a resolução anatómica do fMRI. A combinação da informação obtida através do fMRI com a do EEG tem possibilitado a compreensão do funcionamento do cérebro a uma velocidade nunca antes possível.
A par desta informação anatómica e funcional, técnicas de emissão de positrões (PET, do inglês positron emission tomography) permitem monitorizar e quantificar marcadores cerebrais, nomeadamente o péptido beta-amilóide ou a proteína tau no cérebro de pacientes com doença de Alzheimer, contribuindo de forma instrumental para a compreensão da progressão da doença e para a monitorização de eficácia terapêutica de fármacos em ensaios clínicos.
O estudo do cérebro tem sido também um grande motor para o desenvolvimento de tecnologias de análise e diagnóstico, motivado pela procura de marcadores no sangue e líquido cefalo-raquidiano que reflitam alterações cerebrais. A criação de modelos de neurónios humanos a partir de células estaminais, derivadas de sangue ou pele, que, mais recentemente, envolvem também a criação de “mini-cérebros”, ou organóides – modelos tridimensionais que procuram reproduzir a anatomia e circuitos cerebrais – permitem estudos com aplicabilidade mais robusta.
A evolução nas técnicas de biologia molecular e manipulação genética tem sido essencial para o desenvolvimento de outros métodos de estudo e neuromodulação, como a optogenética, na qual se utiliza luz (óptica) aliada à modificação genética de vias cerebrais específicas, permitindo assim interferir com o funcionamento de circuitos neuronais em tecidos ou em organismos vivos e, desta forma, perceber a sua função como nunca.
Por sua vez, o desenvolvimento de tecnologias como a interface cérebro-computador (BCI, de brain computer interface), que permitem a comunicação direta entre o cérebro e o comando de funções complexas por intermédio de dispositivos externos. A BCI permite o fluxo bidirecional de informações, permitindo estudar, localizar, auxiliar ou reparar a função sensorial-motora ou cognitiva humana. Um dos exemplos nesta área é o desenvolvimento de exoesqueletos para neuro-reabilitação em caso de amputação ou paralisia.
Entramos assim numa nova era em que serão protagonistas as modificações a que o cérebro é sujeito, quer por interação com o sistema imunitário e historial de infeções, quer fruto do contexto social e das relações humanas, quer resultado da alimentação e o microbioma, e cujo impacto poderá alterar a forma como as neurociências ditarão política, economia e sociologia no futuro.
Quase 100 anos depois de Cajal, os neurónios continuam a ser misteriosas borboletas da alma. No entanto, à medida que avançamos no estudo do batimento das asas destas borboletas, vamos dando passos de gigante na compreensão da mente humana.