Animais abandonados: tragédias previsíveis, evitáveis ou uma questão de prioridades?
Nunca será possível ter capacidade de alojamento e meios à medida do problema concreto atual em Portugal, que é gigantesco e está descontrolado. A face visível é que os animais vitimados este fim de semana foram distribuídos por todo o país, sobretudo por entidades privadas e cuidadores individuais.
O passado fim de semana foi marcado negativamente pela tragédia que vitimou dezenas de cães e gatos em dois abrigos para animais, em Santo Tirso. Nas redes sociais multiplicaram-se os lamentos, a fúria, as acusações, as ofensas. Contra os proprietários do espaço, contra as autoridades, contra a câmara municipal, contra o médico veterinário municipal. Contra o Mundo!
Não pretendo comentar propriamente o caso, que obviamente é chocante, pelo número de animais vitimados e pelas imagens que circularam. Importa sobretudo olhar para as razões desta revolta e alegações de incúria. Tão pouco devemos entrar pelo campo da acusação gratuita, infundada e eventualmente difamatória, de quem acompanha uma notícia nas redes sociais e na comunicação social, sem ter conhecimento real de uma situação de catástrofe, e que acorre ao local de forma espontânea como impulso primário. Que devem ser apuradas as eventuais responsabilidades, todos estaremos de acordo. Através da Justiça mas jamais nas redes sociais! E não deveria ser necessário a multiplicação das tão em moda “Petições Públicas” para este facto, como ocorreu, e que em poucas horas já tinham dezenas de milhares de assinaturas (de gente que, como eu, desconhecia factos concretos). Ver surgir estas Petições Públicas como cogumelos é banalizar o seu fundamento mas, sobretudo, significa a falta de confiança em quem deve zelar por nós e pelos animais. Neste e noutros casos. São sintomas que devem ser interpretados!
Continuo a acreditar que, estando envolvidas as autoridades com competência legal para atuar (neste caso, a GNR, a Proteção Civil, a câmara municipal, etc.), deveria ser possível assegurar as decisões corretas no momento e face à gravidade e urgência em cenário de incêndio. Em que as populações humanas e a sua segurança são sempre prioritárias, mas em que os animais não podem ser deixados ao abandono. Deixando transparecer que os organismos do Estado não têm, nesta e noutras situações, capacidade de responder como seria exigido, é deixar campo à formação de milícias populares, associações diversas e grupos de atuação e resgate que atuem inclusivamente à margem da Lei. E aplaudidos pela população e com direito ao palco em direto. É isto aceitável num Estado de Direito? Até quando esta passividade? Sobretudo do Estado, que tem que ser o garante da Ordem Pública e também da Saúde e Bem-estar Animal? Eu, como cidadão, sinto-me envergonhado.
Nos últimos anos, várias foram as iniciativas legislativas aprovadas que visaram incrementar a proteção animal. Refira-se, como exemplos, a Lei 69/2014 (criminalizando os maus tratos a animais de companhia) ou a Lei 27/2016 [criação de uma rede de Centros de Recolha Oficial (CRO) de animais e proibição do abate de animais errantes como forma de controlo da população]. A sua tímida ou impossível aplicação, na prática, transformou a gestão dos animais errantes/abandonados num caos, patente em casos como este.
Politicamente são também anunciados e discutidos pacotes financeiros, sobretudo via Orçamento do Estado ou rúbricas municipais, para campanhas de esterilização de animais, maior capacitação dos CRO, entre outras, mas que jamais resolverão o problema per se, como é fácil entender. São medidas que, pouco acrescentando, como está à vista, parecem sobretudo tentar retirar dividendos políticos.
No caso particular da autarquia de Santo Tirso, e a título de exemplo, numa rápida pesquisa é fácil entender que tem desenvolvido trabalho neste tema concreto, com várias ações e dispondo de um CRO com capacidade de acolhimento para 70 animais. Mas onde não é possível alojar os 200 ou 300 animais que, alegadamente, foram afetados pela tragédia, nos abrigos, no mesmo concelho. Locais que, pelos vistos, já haviam sido fiscalizados. Nunca será possível ter capacidade de alojamento e meios à medida do problema concreto atual em Portugal, que é gigantesco e está descontrolado. A face visível é que os animais vitimados este fim de semana foram distribuídos por todo o país, sobretudo por entidades privadas e cuidadores individuais.
O Estado, que tem a obrigação de zelar pela recolha e encaminhamento dos animais errantes, deve assumir, de uma vez por todas, que não tem capacidade para o fazer? Inúmeras são as autarquias que não dispõem de um CRO, que não têm ao seu serviço um médico veterinário municipal e respetivo serviço funcional. Os médicos veterinários e demais profissionais da área e milhares de voluntários em todo o país tentam o que podem, na tarefa ingrata de acorrer a este problema. Demasiadas vezes sem meios ou condições mínimas. Com uma entrega benévola e meritória, vão lutando, mas não estão mais que a “tapar o sol com a peneira”. O problema vai-se arrastando. Até quando?
Diversas entidades do setor, entre as quais a Ordem dos Médicos Veterinários, têm alertado, há vários anos, pelos diversos meios à sua disposição, para a situação crítica que existe a este nível e a falta de meios. Insistindo e insistindo. Mas sem sucesso. Muitos médicos veterinários tentam ajudar, diariamente, animais abandonados, associações zoófilas, cuidadores informais, etc., de forma voluntária. Sobrepondo-se, muitas vezes, às autoridades que o deviam fazer. Expondo-se, vezes sem conta, ao julgamento da opinião pública e fúria ignorante das redes sociais.
O Estado delegou nas chamadas “Associações de Proteção de Animais” as suas funções e competências? De captura de animais? De decisão sobre a adoção de animais? De alojamento de animais recolhidos? Se o fez, nem que seja por omissão, fê-lo à margem da Lei e das responsabilidades de tutela da Saúde Animal e Saúde Pública. Que não pode ficar ao livre arbítrio, pela responsabilidade inerente. Este vazio do Estado abre as portas a todas as outras situações a que os animais podem ser sujeitos: recolha em locais sem mínimas condições sanitárias, de segurança e bem-estar, animais ao cuidado de acumuladores de animais e outros, alegados negócios de transação de animais, apenas como exemplo. Só não vê quem não quer!
Enquanto não forem resolvidas as questões a montante, não será possível, de forma efetiva, resolver este problema, sugerindo-se algumas medidas concretas:
- insistir na educação da população, nas escolas (sim, levará vários anos, mas é uma obrigação), nas comunidades, na formação dos detentores, na sua responsabilização e formação;
- fiscalização real e efetiva de todos os animais e condições de detenção, criação e alojamento, licenciamento animal (e não apenas cumprir estatísticas e como meio de financiar as juntas de freguesia!);
- fiscalização de todas as associações de proteção e resgate animal, suas formas de financiamento, legitimidade de atuação; neste campo será sempre muito útil o serviço voluntário e de ajuda, mas garantindo a sua colaboração totalmente articulada com os organismos do Estado e de forma transparente;
- robustecimento dos organismos do Estado com atribuições tutelares de fiscalização, como sejam a Direção Geral de Alimentação e Veterinária e respetivas delegações regionais e locais, do SEPNA (da GNR), da PSP, das autarquias, tornando-os mais operacionais e ativos;
- manutenção atualizada do recentemente criado Sistema de Identificação de Animais de Companhia (SIAC), que é uma ferramenta essencial a todo o processo;
- maior dignificação dos profissionais da área animal, que não têm que ser os responsáveis por resolver as questões do dia-a-dia sem terem condições de resposta, ou por não ser da sua competência, quer nas autarquias, quer nos Centros de Atendimento Médico Veterinário (CAMV);
- garantir a indispensável Autoridade Veterinária Municipal em todos os concelhos do país, como seria suposto, como elo fundamental de ligação local e com poderes independentes da esfera política e totalmente operacional;
- campanhas de adoção e de controlo populacional de animais, com esterilização, por exemplo, mas sempre como medidas paralelas, que muito podem auxiliar, mas não resolverão o problema de raiz, apenas o minimizarão;
Infelizmente, é expectável que situações deste tipo continuem a ser notícia. A menos que se encare de forma urgente, responsável e corajosa o problema, fugindo às manobras ou folclore político do faz-de-conta, que não tem conseguido resolver e, eventualmente nalguns casos, até tem agravado os problemas. Anunciou-se há dias a criação de um Grupo de Trabalho para o Bem-Estar Animal (Despacho 6928/2020), que tem como missão a definição de uma “estratégia nacional para os animais errantes”. São questões de prioridades e opções dos decisores que importa exigir. Estaremos todos atentos à concretização efetiva destas intenções.
Os animais agradeceriam!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico