Ainda sobre as cores, os automóveis e os comércios na pandemia: a ver se pega
É este estado pandémico o momento para testar novas dinâmicas no espaço público, novas ocupações, nova vida? Sim, claro: a velha questão da oportunidade. Vai funcionar? Provavelmente, não. Serve para alguma coisa? Sempre: (repetindo-me) a velha questão de ir colocando a semente.
Em Lisboa e no Porto andam a pintar ruas. O pavimento, diga-se. Em Lisboa, uniformizam-se as superfícies, por aqui, no Porto, decoram-se geometricamente. Se em Lisboa se generaliza a área, no Porto particulariza-se a zonas. Lisboa recebe e o Porto oferece, são uma e a mesma coisa. Neste tempo pandémico cabe às entidades (públicas e privadas) a liberdade enquanto método e o teste enquanto estratégia. Experimentar a ver se pega: se pegar é óptimo, se não pegar, gastou-se (aparentemente) apenas tinta.
O poder da tinta permanece ainda questionável. De um lado dir-se-á que uma rua pedonal que afasta o movimento (a velocidade) repele a visita espontânea e a paragem por impulso, acabando por desviar os preguiçosos — todos nós — para outras bandas. Normalmente estou, conceptualmente, deste lado — ainda que a tentar deixar de estar. O lado oposto, arauto da primazia do público e da movimentação colectiva (transporte público, tema para outros ensaios), encontra hoje um eco conjuntural imbatível.
Em 2001, Manuel Graça Dias conversava com Ana Sousa Dias sobre cidades, nas suas saudosas entrevistas para a RTP2. Referia o arquitecto que o automóvel se tornaria/ já se tornara (dependendo do ponto de partida) tão obsoleto quanto os riquexós e as liteiras. Por mais que nós ou Manuel Graça Dias apreciemos chegar de carro a uma rua pintada, pará-lo, abrir a porta e desfrutar instantaneamente da cor da cidade, por mais que esse movimento tão egoísta quanto prático possa garantir, numa primeira fase, mais gente no espaço público, por mais que os centros das cidades (em pandemia, ainda) vazios promovam longos percursos para repescar público aos bocados de cidade onde se dorme, há que se tentar recomeçar novamente a inverter a marcha. Sim, mas logo agora?
Sobre cidades, aprendi com Manuel Graça Dias — ou nele me inspirei, poupando-lhe assim o crédito do meu erro eventual — a defesa do movimento, da animação, da agitação urbana complexa e da heterogenia de gentes e automóveis, de trabalho e turismo, de bicicletas (e agora trotinetas e motos de carregadores de comida) e de esplanadas, de dormida eventual a descanso permanente, de passeio relaxado e percurso apressado: a cidade, enquanto espaço para tudo. É por tudo isso que tanto me custa ir “à cidade” em espaço de pandemia. A cidade pandémica é o seu oposto, uma cidade tonta e baralhada na sua desocupação funcional, que ainda assim tem de tentar(-se).
Sobre cidades, aprendi por mim, nos meus seis anos de batalha na sobrevivência da ideia da loja de rua (e ainda de nicho), que o automóvel é ainda o melhor amigo do comércio — quer do útil, quer do inútil. Uma rua onde o automóvel não chega tão bem é (ainda) uma a rua onde a vida urbana chega pior: parada, à espera, em suspenso. Qual animal em alerta ao primeiro som, o comerciante de uma rua pedonal – salvo as simbólicas excepções – aguarda pacientemente que a vida, preguiçosa, o procure. Ao comerciante da rua pedonal – salvo as simbólicas excepções – não é permitida a pró-actividade dos seus pares na rua automóvel que seduz o cliente automobilista à passagem. Ao comerciante da rua pedonal – salvo as simbólicas excepções – cabe a passividade da expectativa de agradar a quem o descobriu acidentalmente na bonança de um passeio (economicamente) despreocupado.
Salvo as simbólicas excepções, dizia. É este estado pandémico o momento para testar novas dinâmicas no espaço público, novas ocupações, nova vida? Sim, claro: a velha questão da oportunidade. Vai funcionar? Provavelmente, não. Serve para alguma coisa? Sempre: (repetindo-me) a velha questão de ir colocando a semente.
A rua automóvel é sempre melhor para o bulício (e para a economia) de uma cidade do que a rua pedonal, excepto quando esta é simbólica. Serve este momento pandémico para começar a criar novas simbologias, tentando, experimentando, arriscando, com ou sem cor. Este é o momento de devolver, de vez, o espaço público ao público. Este é o momento das instituições (públicas e privadas) oferecerem o espaço público às ideias descomprometidas, desculpadas pela excepcionalidade pandémica — e pode ser que alguma, interessante e capaz de simbologia, acabe por pegar.
Se a cidade sem carros, liteiras e riquexós (despoluída, descravizada e mais justa socialmente) é o objectivo inegável e eco único para os nossos tempos, não podemos esquecer que, em espaços de pandemia, enquanto se ensaia a nova simbologia para o espaço público, agravam-se os efeitos secundários da solidão económica e da solidão humana. Se à pandemia que ainda esvazia as cidades acrescentamos o esvaziamento pela proibição do percurso utilitário, podemos eventualmente constatar que a emenda forçada é ainda mais imprudente e nociva do que o estado a que tínhamos chegado.
Basta ter cuidado: um cuidado simbólico. Tudo isto porque a cidade tem poucos moradores. Tivesse mais e poupar-se-ia na tinta, na gasolina e nos efeitos secundários (económicos) da pandemia.