“Braços da mesma árvore”
Em tempos de medo e de grande desconfiança, sempre que traçarmos fronteiras que dividem, que semearmos discursos de ódio ou criarmos dinâmicas de “nós” contra “eles”, estaremos a caminho do abismo. Será só uma questão de tempo até que o ódio cumpra o seu papel devastador.
Richard Stengel, o jornalista que apoiou Mandela na redação da sua autobiografia, contava que Madiba se divertia com o sentido literal das árvores genealógicas ocidentais. Na sua visão, somos todos braços da mesma grande árvore. E acrescentava: “Isto é ubuntu.”
Poderemos recuperar esta “utopia”?
Acreditamos que sim. Neste Dia Internacional Nelson Mandela (18 de julho), em que se celebra o seu legado, é adotada, numa conferência internacional, a Declaração Ubuntu “Uma só família humana”, subscrita por 5000 pessoas, num evento em que participam 30 oradores, de 19 países, entre os quais se encontram três prémios Nobel da Paz (Yunus, Sathyarti e Ramos-Horta) e que aqui revisitamos.
No tempo turbulento que nos é dado viver, importa reafirmar princípios estruturantes para um futuro desejado. Precisamos de mapas e de pontos cardeais de referência, através dos quais se possa traçar um rumo.
Devemos regressar sempre ao fundamental. Reafirmar o princípio da igual dignidade de cada Pessoa e de todas as Pessoas. Essa igualdade é absoluta e incondicional, assim como o é o valor da vida. A ninguém, em nenhuma circunstância, lhe pode ser roubada e sempre que esta seja atacada, tal deve ser repudiado sem hesitação. Mas, mais do que isso, o atentado à vida ou a ferida à dignidade humana de qualquer pessoa diz-me respeito, toca-me. Por isso, somos chamados à ação para defender a vida e promover a dignidade humana.
Reconhecemos, hoje e sempre, que a diversidade humana é um dom. Acreditamos que a riqueza criativa que nos é proporcionada pela diversidade étnica, cultural, política ou religiosa constitui uma força que nos deve unir. Mas, em simultâneo, nunca esquecemos que partilhamos uma mesma natureza, que se sobrepõe a qualquer diferença. Acreditamos na unidade na diversidade.
Temos bem presente o perigo de criar linhas que separam, de categorias que nos arrumam ou de estereótipos que nos habitam. Evitamos categorizar qualquer pessoa numa “história única”, como alertava Chimamanda Adichie, consoante o grupo em que a colocamos. Queremos estar sempre abertos à riqueza de cada pessoa, nas suas múltiplas dimensões.
Esta visão leva-nos a recusar qualquer expressão de maniqueísmo, que rotule grandes grupos humanos, catalogando uns como “bons” e outros como “maus”. Qualquer generalização de uma qualidade ou defeito, associando-a a uma identidade coletiva, não faz sentido. Está, inexoravelmente, errada. Por isso, deve ser recusada.
Esta visão faz-nos revisitar Solzhenitsyn, no seu Arquipélago de Gulag, para nos relembrar que “a linha que separa o bem e o mal, não passa entre Estados, entre classes, nem sequer entre partidos políticos – mas sim por cada coração humano. E em todos os corações humanos. Essa linha muda. Dentro de nós, oscila ao longo dos anos. E mesmo dentro de corações oprimidos pelo mal, existirá sempre uma réstia de bem. E mesmo no melhor de todos os corações, permanecerá um canto de mal”. Isto implica que todas visões que cristalizam no tempo a definição do carácter de uma pessoa, mesmo a partir de algo errado que fez, podem enganar-nos. Somos seres em permanente evolução e em nenhum de nós desaparece a possibilidade de fazer florescer o bem dentro de si. E em nenhum de nós desaparece o risco de errar. A linha que separa o bem e o mal atravessa o coração de cada pessoa.
Celebrar o legado de Mandela passa também por tornar presentes os seus gestos e as suas palavras. Quase provocatoriamente dizia que: “Ninguém nasce a odiar as pessoas por causa da cor da sua pele, ou pelo seu passado, ou pela sua religião. As pessoas aprendem a odiar e, se elas podem aprender a odiar, elas também podem aprender a amar - já que amar é um sentimento que vem com mais naturalidade ao coração humano do que o seu oposto.”
Amar, neste contexto, implica não ignorar as feridas de tantas ofensas à dignidade humana que a história humana conheceu. Da escravatura ao antissemitismo, da perseguição por razões políticas, religiosas ou ideológicas ao racismo, da violência de género à discriminação em função da orientação sexual, entre outras, temos uma herança pesada que, em alguns casos, está ainda muito presente entre nós. Precisamos de ter consciência de que há ainda um longo caminho a percorrer. Nele, é importante a aposta no princípio da equidade. Isso significa reconhecer que existem desigualdades estruturais e individuais que devem ser tidas em conta e erradicadas, criando todas as condições necessárias para uma verdadeira e completa igualdade de oportunidades para todos.
Tudo isto convive com o pressuposto de que a liberdade de cada pessoa é um bem sagrado. Defendemos que nenhuma adversidade nos deve retirar a consciência de que cada um de nós pode ser, como propunha W.E. Henley, “senhor do seu destino / capitão da sua alma”. Mas com essa liberdade vem a responsabilidade do que fazemos e do que ignoramos.
Finalmente, em Mandela, causa uma grande perplexidade como foi capaz de sair de 27 anos de prisão, injusta e inaceitável, sem odiar os seus “adversários” e, ao invés, propor uma “sociedade arco-íris”.
O seu “aprender a amar”, enxertado no nosso tempo, pode ser interpretado como a recusa de qualquer expressão de ódio e de violência (“agarrem nas vossas armas, nas vossas facas, nos vossos machetes e atirem-nas ao mar”, dizia Mandela num comício do ANC, em Durban, em 1990) como forças motrizes da transformação social. O ódio desumaniza-nos e faz-nos olhar para o “outro” na categoria de “inimigo”, logo, menos humano. Não acreditamos que da violência nasça qualquer bem duradouro. Só a não-violência ativa poderá trazer uma mudança justa e sustentável.
Isto é ser Ubuntu.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico