Eu sou autista, sou verbal, mas não sou o Sheldon Cooper. Na verdade, pareço-me tanto com o que a sociedade considera normal que passei 29 anos sem diagnóstico.
É relativamente comum as mulheres serem diagnosticadas muito mais tarde, muitas vezes quando têm filhos autistas, e começam a pesquisar sobre o assunto. Isto acontece porque até há relativamente poucos anos, os estudos em pessoas autistas para analisar comportamentos e criar um diagnóstico foram feitos apenas em homens. Ao serem excluídas de consideração, as mulheres, tendo determinados comportamentos diferentes, como o facto de mascararmos comportamentos autistas ao imitar as pessoas à nossa volta mais facilmente que os homens, passaram por entre os dedos dos especialistas.
Se passaram a adolescência sem diagnóstico, então em adulto ainda é mais difícil, com anos e anos a lutar contra psicólogos sem experiência com adultos no espectro e falta de apoio. É raro um autista verbal adulto ou com Síndrome de Asperger não ter sido diagnosticado várias vezes de ansiedade ou pelo menos uma perturbação mental, levando a que muitos tenham traumas associados a profissionais de saúde mental. Em vários casos, incluiu diferentes psicólogos a perguntar ao autista se tem a certeza que quer o diagnóstico, visto que o estigma à volta do mesmo pode prejudicá-lo na vida.
Psicólogos ou psiquiatras com experiência real em diagnóstico de mulheres ou adultos no espectro são raros de se encontrar, e como ainda hoje não existe um teste específico para o autismo, o diagnóstico em casos considerados mais leves tem que ser com alguém experiente. Se tiver a sorte de ter um diagnóstico, terá depois de lutar por apoio e terapia. No entanto, a terapia é rara, dispersa pelo país, e caríssima se tiver que ser suportada pelos pais. Se tiver um filho no interior, terá de se deslocar a Lisboa só por uma consulta, o que não é sempre possível.
A falta de estudos não ajuda, com um estudo sobre prevalência do autismo em Portugal de 2005 a dizer que afecta homens-mulheres na proporção de 5:1, quando globalmente começam a surgir números como 2:1. Mais uma prova em como estamos a falhar as mulheres autistas.
O autismo ainda é um tabu que horroriza a população. É uma palavra lendária como “Bloody Mary”: se for dita três vezes, pode aparecer lá em casa. Após a morte de um autista pela mãe, vi diversos comentários divididos entre defender a mãe, por “ninguém compreender até ter uma criança assim”, ou a defender o filho, por “pobre criança que sofre de autismo”. Raramente vi alguém a culpar a falta de apoio generalizada para as famílias e para os autistas, que neste caso tem a sua dose de culpa.
No entanto, a mesma sociedade que cuspe a palavra autismo, por se sentirem horrorizados com este transtorno desesperante, são os mesmos que ouvem podcasts de assassinos em série e conversam sobre um novo mistério à volta de uma mulher torturada, com um à vontade de quem percebe da coisa. Vê-se todos os documentários sobre o Ted Bundy passar a número 1 nas plataformas de streaming, com pessoas a querer saber todos os pormenores de uma mente psicopata, mas saber o mínimo sobre a mente de um autista? Não, obrigada, isso já assusta.
Por isso é que digo, há mais estigma em relação aos autistas do que a psicopatas. Há um fascínio pela mente de quem mata, mas a mente autista e as suas famílias têm que ser escondidas da vista.
Os únicos modelos que temos de autismo na televisão são génios ou casos severos, sem haver qualquer representação do resto do espectro autista. O Sheldon Cooper esteve tantos anos na televisão, a mostrar o quanto irritava os amigos, mas raramente mostraram o porquê de ele precisar de rotina ou de um sítio específico para se sentar. No entanto, se o autismo chegar às notícias, convidam psicólogos, médicos e especialistas para conversar sobre um assunto que estudaram, mas que não o são. Os estudos podem ficar obsoletos em meia dúzia de anos com novas investigações, no entanto sou autista há 30 anos e continuarei a ser.
Algo que parece ainda não ser compreendido é que autismo não é doença, mas sim um cérebro diferente. Numa doença, é normal que quem a estudou lidere o conhecimento da mesma, como médicos. No entanto, o autismo é quem somos. É o nosso cérebro, o que nos torna mais uma comunidade do que doentes.
Será porque os autistas não falam? Não. Há uma imensa comunidade que constantemente tenta comunicar a falta de apoio e a falta de representação na imprensa, ou como dirigentes de organizações autistas. As maiores organizações de apoio ao autismo, que assinam terapias e apoios que nos afectam, não têm uma única pessoa autista nos quadros, ou como conselheiro. Incluindo uma das maiores a nível mundial em que uma percentagem ridiculamente pequena do dinheiro angariado vai de facto para apoios e desenvolve vídeos onde mães falam abertamente de como pensaram matar os filhos.
Para mim, o autismo é o meu superpoder. Tenho interesses especiais que passo dias inteiros a estudar, pelo intenso foco por interesses que o autismo me dá, que os neurotípicos (não autistas) não têm. Pokémon foi criado por Satoshi Tajiri após sua obsessão por coleccionar insectos e Greta Thunberg usa sua paixão pelo combate às alterações climáticas, o que a tornou numa das mais conhecidas activistas do mundo.
Posto isto, há algumas coisas que a comunidade autista gostava que vocês soubessem:
- Nós nascemos autistas. É quem somos, não é uma palavra má para sussurrar à distância. Eu não “sofro de autismo”, eu sou autista.
- Os autistas não-verbais passaram de 50% a 25% das pessoas no espectro em apenas uma geração, graças a terapias, mais diagnóstico de casos leves e apoio. Muitos ao verbalizar dizem que compreendiam tudo o que lhe diziam. Sê responsável e tem compaixão. Autismo não é necessariamente deficiência mental e a agressividade pode ser controlada com apoio.
- O adulto autista já foi uma criança autista. Procurem a comunidade adulta para compreender as crianças de hoje.
- Organizações de apoio ao autismo, sem a perspectiva autista, muitas vezes apoiam terapias e tentativas de “cura” prejudiciais e traumatizantes. Precisamos de vozes autistas nas decisões que afectem a nossa comunidade.
- Se acharem que alguém não parece autista, não quer dizer que não o seja, mas pode ser que o vosso entendimento do que é autismo é limitado e dependente de séries televisivas que nos estereotipam, principalmente a mulheres.
- O diagnóstico devia ser direito humano. Precisamos de saber quem somos para não passarmos a vida a culparmo-nos por nos sentirmos diferentes. Autismo não é uma doença, é o nosso cérebro e ficará connosco a vida toda.
- O meu autismo não é mau. Eu não quero ser “curada”. Autismo é quem sou e adoro os superpoderes que me dá. O mau do autismo é a intolerância da sociedade para com as minhas diferenças. Apesar de haver dificuldades associadas, são ultrapassadas relativamente bem com apoio, compreensão e espaço para sermos quem somos.
- Se conheces um autista, conheces um autista. Somos todos diferentes.
Alguns activistas autistas estão inclusive a receber ameaças de morte online por dizerem quem são, mas não “parecerem” ser quem a sociedade acha que deviam parecer, principalmente mulheres. Temos que compreender que o nosso cérebro não muda, e visto que ainda há muito que estudar em torno do autismo, é necessário incluir as nossas vozes.
Com isto só quero terminar dizendo que os pais apenas estão a tentar fazer o melhor pelos seus filhos. Os psicólogos experientes e que reconhecem o autismo em mulheres e adultos são uma dádiva, e ajudam-nos imenso a aceitar quem somos. Com este texto apenas peço um lugar à mesa de decisões que nos afectam, e mais apoio, terapias e diagnóstico para autistas e as suas famílias. Se possível, formação também para quem lida com crianças. A escola era o lugar ideal para reconhecer certos indícios, principalmente em meninas.
Por fim, só quero dizer que nós temos voz. Oiçam-nas. Para aceder a informação online vinda de vozes autistas sigam a tag #ActuallyAutistic. Podem também visitar o meu blogue Data Activism para uma perspectiva feminina do espectro, ou seguir a minha conta de Instagram @AutismoemPortugues.