Ciclistas e peões saíram à rua em várias cidades para pedir que não os matem
Em Lisboa, Aveiro, Braga, Évora, Faro, Guarda, Mértola, Porto e Santarém, foram muitos os que, em nome de uma jovem atropelada há uma semana em Lisboa, apelaram à redução da velocidade dos carros nas cidades, ao respeito pelos mais frágeis, que não circulam protegidos por chapa.
Por 16 minutos, um por cada ano de vida de Ana Oliveira, morta há uma semana por um automóvel, mais de uma centena de pessoas encheram o Campo Grande, em Lisboa, de silêncio. Todos de máscara, bicicletas no chão, ocuparam a rua e a passadeira que a jovem tentou atravessar mas não conseguiu porque um condutor não respeitou o sinal vermelho. Um pouco por todo o país, sucederam-se as manifestações contra os atropelamentos. Peões e ciclistas juntaram-se para exigir cidades desenhadas para seres humanos e não carros.
Em Lisboa, o manifestantes escolheram um local duplamente simbólico: a passadeira onde ocorreu o sinistro e frente ao edifício da Câmara Municipal de Lisboa (CML), que para muitos não tem feito o suficiente para acalmar o tráfego na cidade. Segundo Catarina Lopes, uma das organizadoras, a manifestação foi o resultado de esforços de várias associações de ciclistas diferentes, como a Massa Crítica, a Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta e a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta. Ali reunidos e com reivindicações diferentes, o mesmo apelo unia-os: a promoção de formas de mobilidade suave em detrimento do automóvel e “uma cidade mais segura”.
Embora a câmara esteja a tomar medidas, como a multiplicação de ciclovias, Catarina Lopes refere que é necessário fazer mais, a começar pelo “mindset dos automobilistas que não respeitam os peões e os ciclistas”. Sente-se segura a andar de bicicleta na cidade mas aponta que o mesmo não se pode dizer de indivíduos em situações mais vulneráveis ou que tenham menos experiência como ciclistas. As razões são várias: a falta de uma grande rede ciclável e de zonas 30 (onde os carros só possam circular, no máximo, a 30 e km/h), bem como a “letargia” que aponta às autoridades de trânsito, como a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), que está “muito parada num modelo obsoleto de desenho das cidades, em que é o carro que manda”. Admite que é um processo lento, e que “as coisas não vão mudar de um dia para o outro”. Afinal, estas mudanças implicam um redesenho da capital e “muitos perfis de arruamento não permitem zonas 30”, aponta. Contudo, defende que é precisamente por isso que está ali, para que “as coisas possam ser feitas em cinco, dez anos, em vez de 20 ou 30.”.
O problema é sistémico diz Inês Pascoal, outra organizadora e membro da Massa Crítica. A activista pede maior fiscalização dos automobilistas incumpridores e medidas como a sobreelevação de passadeiras (para redução da velocidade dos automóveis) ou instalação de câmaras nos semáforos - esta medida já foi posta em prática noutros países da Europa, como a Suíça e a câmara defende-a.
Inês Pascoal aponta ainda o buzinar que diz ouvir frequentemente dos automobilistas quando anda na estrada, na maior parte das vezes por simplesmente estar a circular. Este antagonismo dos condutores de automóveis com os ciclistas também foi referido por outra manifestante, Ana Pereira, que afirma sentir-se “razoavelmente segura” a circular de bicicleta em Lisboa, mas que por vezes sente receio da “hostilidade deliberada” de muitos condutores, que diz ter raízes numa “cultura do carro”.
Pelo país fora
Mas a manifestação ultrapassou a cidade onde morreu a jovem e fez-se nacional No Porto, pouco mais de duas dezenas de pessoas juntaram-se na Casa da Música. Não houve gritos nem houve cartazes: leu-se um manifesto, ouvido por todos e recebido com uma salva de palmas.
Manuel Barros, representante da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB) no Porto, explica que a manifestação foi uma “homenagem” e um alerta: “o atropelamento da jovem de 16 anos foi uma coisa muito grave e merece a nossa indignação”.
Manuel aponta a “falta de planeamento das cidades” como uma ameaça tanto a ciclistas como a peões. “Os poderes públicos têm de desenhar as cidades para que nunca se atinjam velocidades altas. Os condutores levam uma máquina muito pesada que pode ser uma arma”, acrescenta. “O que eu gostava é que esta fosse a última manifestação que fazemos”, concluiu.
Junto ao chafariz sem água da Praça da República, à vista da icónica Arcada de Braga, cerca de 30 utilizadores da bicicleta, crianças e adultos, alguns equipados a rigor, todos de máscara, uniram-se. Enquadrado num cenário com bicicletas de estrada, de BTT, dobráveis e citadinas, o coordenador da iniciativa em Braga, Mário Meireles, leu o apelo da FPCUB à redução da sinistralidade nas estradas e ruas portuguesas, seguido por um minuto de silêncio.
O também presidente da Associação Braga Ciclável defende a redução dos limites de velocidade para os automóveis nas cidades portuguesas, o fim da “impunidade no enquadramento legal” associado aos sinistros e mais fiscalização. “Era preciso um reforço, porque isso ia levar a outro tipo de comportamentos”, afirma ao PÚBLICO.
O dirigente frisou que, só no concelho de Braga, registaram-se 2535 acidentes com vítimas, entre 1999 e 2017, e apontou as avenidas da rodovia como os pontos que exigem maior reorganização espacial e limitação da velocidade - é comum os automóveis circularem ali a 100 quilómetros por hora.
Em Aveiro, a iniciativa juntou cerca de meia centena de cidadãos em frente ao Museu Santa Joana, localizado junto a uma das principais rotundas da cidade. “Uma cidade segura para todos” era a mensagem expressa na faixa colocada em cima de algumas bicicletas.
Os participantes responderam ao apelo da associação Ciclaveiro e deslocaram-se, na sua grande maioria, de bicicleta para o local da manifestação. Foi o caso de Joana Moreira, que se fez acompanhar do marido e do filho. As experiências que vivem no dia-a-dia, enquanto utilizadores habituais da bicicleta, levaram-nos a marcar presença nesta acção. “Quando acontece alguma coisa, o condutor diz logo que a culpa é nossa, nunca reconhece que não nos viu ou que não teve o devido cuidado”.
Para um país onde se pedala ainda pouco, numa década, Portugal já soma 268 mortes de utilizadores deste veículo.