TAP – O maior erro político de António Costa
O Estado português vai voltar a ser o ente responsável pelo que se passar, agora sem qualquer desculpa, agora sem poder dizer que não conhecia o enquadramento global em que nos movemos.
A TAP está em morte cerebral há muito tempo, os seus principais órgãos já faliram e ninguém quer desligar a máquina e fazer o funeral que se impõe.
Perante este cenário, radical mas profundamente verdadeiro, o Governo português decide entrar de cabeça num processo que nos vai levar ao maior fracasso político dos governos de António Costa, a um calvário que se vai desenvolver no próximo decénio e que marcará a vida política de forma grave.
Quando, na década de 1990, se mudou o registo das nomeações das administrações da transportadora, com a entrada de Fernando Pinto e uma equipa que, aparentemente, poderia encontrar uma estratégia, os principais eixos assentavam no equilíbrio da exploração, a garantia das rotas que eram centrais na perspetiva da diáspora portuguesa e, ainda, a externalização de funções que possibilitasse a oferta no mercado de serviços não core. Fernando Pinto encarnou essa missão e contou com o apoio, mais militante ou mais distante, de cinco primeiros-ministros ao longo das duas décadas de gestão. Não resultou, adiou-se o inevitável.
Os negócios da TAP no Brasil, as opções relativas a algumas rotas, as decisões sobre a aquisição de aeronaves, a transformação da marca TAP em linha branca com um dos piores serviços, a progressiva dificuldade em garantir a fidelização dos clientes e a imprevisibilidade dos seus horários, são, porém, as marcas mais visíveis das administrações que, na dependência estratégica do Estado, quase consagraram uma companhia propriedade dos seus gestores.
O processo de privatização desenvolvido pelo governo de Passos Coelho desmereceu, porém, o elemento saudade das elites portuguesas. Para muitos, de acesso fácil à formação da opinião, a TAP ainda era a grande empresa onde as hospedeiras marcavam a moda, onde se podia beber o melhor uísque e o melhor champanhe em qualquer viagem, a empresa que era um pouco da presença de Portugal em todo o mundo, uma referência de saudade visível na chegada de Simone depois de um Festival da Eurovisão.
No início da segunda década do nosso século estávamos já no global, no uso fácil do avião, como nas décadas de 1960 e 1970 havia acontecido com o inter-rail. Com essa democratização do transporte aéreo, com as companhias low-cost a que se juntavam as ofertas de alojamento de baixo custo, milhões de cidadãos passaram a viajar ao preço que melhor lhes convinha, quase nunca na TAP, quase sempre num qualquer voador alternativo.
Os negócios continuaram a fazer-se (cada vez menos) na TAP, em boa verdade porque a tal saudade e a ambição de um melhor serviço ainda sobrelevavam. Mas as empresas que olhavam e olham os custos também deixaram de voar na “verde e rubra”, as agências de viagens abriram a oferta a todas as demais companhias e, nos fluxos intercontinentais, a TAP passou a ter concorrência feroz, quase sempre ganhadora.
A dimensão do mercado português, olhando as métricas do negócio, também desgraduou o interesse em voar para e a partir do Porto e, não raras vezes, impuseram obrigações no transporte aéreo para as ilhas que implicavam a visão “unitária” do país e desmereceriam nas determinações estratégicas que o acionista Estado deveria fazer cumprir. É esta sensação que leva o Norte a revoltar-se e a dizer, agora sem cuidados, que já se passaram os limites da paciência perante o centralismo lisboeta.
Um olhar atento sobre o processo de extinção da Varig e da mais recente integração da Iberia no grupo British Airways deveria ter obrigado a um pensamento estruturado sobre o negócio da aviação em Portugal. O grande grupo brasileiro, que havia formado Fernando Pinto, caiu com estrondo em 2006, já com o governo Lula. A incapacidade para gerir a enorme dívida, a abertura dos mercados, o peso excessivo da máquina (também, os interesses cruzados dos partidos políticos) impediram a Varig de se refazer. Os conhecedores do mercado dizem mesmo que se afirma complexa a transformação de uma companhia marca para uma marca como integrante de várias companhias.
Ora, foi exatamente o que aconteceu com a integração da Iberia no aglomerado British Airways, uma marca que tem como objetivo consagrar ofertas para todos os segmentos e corresponder ao transporte à escala global com sinergias na gestão da cadeia de valor.
O processo Iberia pode responder aos grandes argumentos que se apresentam hoje para uma intervenção estatal na TAP. A relação com a América Latina era, no universo espanhol, muito mais relevante que a nossa relação com os países que falam português, a importância insular do transporte aéreo espanhol era incomensuravelmente maior do que a que se afirma nas nossas relações com as regiões autónomas, e o transporte doméstico entre regiões sempre observou uma dimensão que não tem qualquer comparação com a ligação Porto-Lisboa.
Apesar de tudo isso, a Iberia não tinha qualquer capacidade para sobreviver no modelo clássico e pesado, pejado de interesses, que sempre havia adotado, razão bastante para que em Portugal, e por leitura análoga, se observem as reservas mais negras.
O que vai acontecer na TAP, olhando para todas as transformações que se estudaram nas últimas três décadas no espaço europeu, tem uma clareza tal que nos deixa perplexos com a imperícia para enfrentarmos, com coragem, o futuro.
O Estado português vai voltar a ser o ente responsável pelo que se passar, agora sem qualquer desculpa, agora sem poder dizer que não conhecia o enquadramento global em que nos movemos. A TAP vai precisar já dos 1,2 mil milhões de euros para continuar com a boca fora de água; vai precisar de mais capital, talvez o dobro, para se reestruturar; vai reduzir consideravelmente o seu pessoal, as suas rotas, a sua operação; vai alienar aeronaves; vai ficar sujeita à resposta política do dia, às obrigações de corresponder às notícias do dia; vai viver forte instabilidade laboral e vai perder os melhores quadros; vai fazer crescer os seus preços; vai ter pior serviço por ter de voar com aeronaves de outros; vai ser sujeita aos condicionalismos regionais que já hoje se fazem sentir; vai voltar a ser porta aberta dos interesses partidários e do amiguismo; vai chegar à terceira década do século com uma situação tal que mais não restará que a sua alienação a um preço módico e se houver, nessa altura, algum interessado.
Em política, por este tempo, voltar atrás tem um preço alto, não fazer o que se impõe cria danos irreparáveis. A TAP não tem futuro nesta visão salazarista de “orgulhosamente sós”; não tem qualquer viabilidade se não ceder no provincianismo do verde e do vermelho; não terá qualquer relevância quando se concluir que o tempo de hoje foi um mau tempo.
A pergunta que se faz, perante o que aqui está escrito, é simples: como se pode ser tão descarado na previsão de um futuro distante? A resposta parece simples: o conhecimento, cada vez mais profundo, dos movimentos dos interesses e o custo enorme em que, nas últimas décadas, se afirmaram as opções ideológicas que negam o movimento da História. Esta são as duas razões bastantes para o que aqui dizemos. Estaremos cá!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico