Amazônia e o enigma da “pura sorte”
Enquanto o coronavírus se alastra pelas vidas das pessoas e pelos territórios que deveriam estar protegidos ou isolados, várias perguntas ainda precisam de respostas.
Quando o céu estiver preto/E das nuvens até as sombras assombram/Quando o céu estiver preto/E das nuvens até as sombras assombram/É só o reflexo do que está acontecendo/Só está faltando fósforo. Me dê aí!/Não esqueça que nesse momento/O vento sacode as árvores/E o clima que fica e o ar agitado/Dizendo tudo o que pode acontecer
Os Pingo da Chuva é uma música dos Novos Baianos lançada em 1997 que ressurgiu nas redes quando outro músico brasileiro, Nando Reis, divulgou um vídeo em maio deste ano. No registro, ele ensaia com parte do grupo e canta a música, uma favorita.
Outras coisas ligam a letra de 1997 a 2020. Uma delas é que o céu pode estar prestes a ficar escuro novamente, como aconteceu no ano passado, com associação instantânea a um pico de queimadas. Podemos reviver em breve momentos similares com a proximidade da temporada do fogo.
E o cenário tem sido cuidadosamente preparado para isso. No começo de junho, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou dados consolidados do Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), programa que divulga os dados oficiais de desmatamento na Amazônia. Foram 10 mil km² destruídos, uma alta de 34,2% em comparação com o mesmo período de 2019. Além disso, as multas caíram 50% em meio a uma alta recorde do desmatamento.
Como já se noticia há algum tempo, o governo atual vem canalizando todo tipo de esforço para passar boiadas e ajudar invasores de terra. No ano passado, o então presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, foi exonerado após ser acusado pelo presidente da República de estar “a serviço de ONG”.
No sincericídio de Salles, uma avaliação correta. A imprensa tem sido obrigada a priorizar a cobertura sobre o novo coronavírus. É preciso contextualizar e sugerir possíveis caminhos a partir dos debates científicos e políticos. A maior crise de saúde da história recente é um tipo de violência episódica, que revolve outros dramas enfrentados na região amazônica, onde a indiferença do Estado torna-se a maior das violências.
Sistemas de saúde mal estruturados e enfraquecidos poderão sofrer ainda mais pressão com as queimadas, que deterioram a saúde respiratória das pessoas, já ameaçada pela ação natural do vírus. Com a chegada da época de secas, os responsáveis pelo desmatamento voltam às regiões desflorestadas para “finalizar o serviço” com fogo.
Em menos de dois anos sentado na presidência, Bolsonaro conseguiu engendrar, sem paralelos, uma imagem deprimente do Brasil em âmbito internacional. Com um condenado a cargo do ministério e sucessivas derrotas e gafes na condução da pasta, o presidente disse no Twitter, em 5 de junho, que o país é injustamente atacado nessa área, já que é o que mais preserva.
Mas nem a pandemia foi motivo para interromper o projeto de devastação. Na revista Época, o ex-diretor do Serviço Florestal Brasileiro calculava que o novo coronavírus seria um vetor de diminuição do desmatamento. Mas o desmonte dos órgãos de fiscalização, agora loteados por policiais militares e outras figuras, projetos oficiais de grilagem e afagos a invasores ajudaram a aumentar o flagelo.
No mesmo texto, notícias piores: o período do fogo deve coincidir com o pico da pandemia no país, que deve acontecer até julho. E o Ibama está atrasado nas suas atividades. Reportagem d’O Eco aponta que o Instituto demorou 2 meses a mais do que o normal para publicar o edital de contratação de brigadistas para o programa PrevFogo, que saiu na terça-feira (23).
Ainda sobre a grilagem, não surpreende que o defensor da MP que leva o crime como apelido tenha sido indicado pelo procurador-geral da República Augusto Aras para coordenar a 4.ª Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do Ministério Público Federal. Sim, do órgão que deveria fiscalizar e controlar esse tipo de atividade. Juliano Baiocchi Villa-Verde de Carvalho disse que a peça era um texto de “livre iniciativa privada”.
Exploração e reparação
Embora a racionalidade econômica seja um dos problemas no trato do Estado brasileiro com a Amazônia, vale observar alguns aspectos sob esse prisma. Investidores internacionais — trinta de todo o mundo, desta vez — têm reiterado preocupação com a política ambiental, publicou o Estadão. Comandante do Conselho da Amazônia, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que o país vai responder com “verdade e trabalho”.
O professor Ricardo Abramovay lembrou no relatório (que virou livro) A Amazônia precisa de uma economia do conhecimento que dá mais retorno investir na floresta em pé do que em edições sucessivas do Plano Safra.
Na opinião de Ricardo Galvão para a Deutsche Welle, a melhor saída para o momento não passa pelos processos judiciais, mas por ações como as citadas por Abramovay. Explorar a biodiversidade da floresta por meio de certificação de produtos em áreas com manejo sustentável e alguns incentivos tributários para incentivar as boas práticas.
Apesar disso, outros questionamentos continuam relevantes: como pensar em outras políticas e práticas sustentáveis para a Amazônia em meio a uma pandemia? Como superar a desgraça de diversas etnias que perdem anciãos e História para a covid-19? O que temos a oferecer como reparação pelas perdas diárias destes povos? Há tempo ainda de evitar um genocídio destas populações nativas? Podemos seguir como país enquanto reduzimos política ambiental em troca de benefícios para invasores e política indigenista em troca de doações de cesta básica?
É preciso lembrar que grande parte da contaminação dos povos originários é causada por esses invasores, assim como o desmatamento. E que a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) sequer integram o Conselho comandado por Mourão, enquanto o governo investe em uma operação de Garantia da Lei e da Ordem para fiscalização ambiental — recurso que deveria ser gasto com os órgãos que possuem competência para tal.
Enquanto o coronavírus se alastra pelas vidas das pessoas e pelos territórios que deveriam estar protegidos ou isolados, essas perguntas ainda precisam de respostas. E, conforme afirma o cientista do Inpe, Carlos Nobre, em recente conversa conosco, a relação entre pandemia e desmatamento é mais próxima do que se imagina: “Ainda é um mistério científico o porquê das severas perturbações na Amazônia nunca terem gerado uma grande epidemia ou pandemia. Há milhões de micro-organismos e todo tipo de perturbação e oportunidades de potenciais patógenos migrarem para humanos. Por falta de uma sólida explicação científica, uma forma (não científica) de dizer é: ‘pura sorte’”.