Quem disse o quê
Quem me lê saberá que quem disse o quê não é quem parece que disse, já que, se assim não fosse, o jogo não teria qualquer interesse. O Google tira muita graça a este tipo de interacções.
Conta o magnífico Nelson Rodrigues numa crónica dos anos sessenta que foi a um sarau político no Rio de Janeiro, no qual “o marxismo reinava” (como em todo o Brasil “grã-fino” pós-1968, ao que parece). Levava os bolsos “entupidos” de papéis com citações várias, tendo perguntado depois aos convivas quem tinha escrito tais coisas.
Passo a citar:
“E comecei a ler frases de recente leitura: — O imperialismo é a tarefa dos povos dominantes — Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos”. Estes últimos “eram o país mais progressista do mundo”. “Contra o imperialismo russo, a salvação é o imperialismo britânico. […] A Alemanha é um povo superior e os latinos e os eslavos, mera gentalha.” Ainda sobre os eslavos: — “Povos piolhentos, estes dos Bálcãs, povos de bandidos”. Os búlgaros, em especial, são “um povo de suínos” que “melhor estariam sob o domínio turco”.
Ao fim de duas horas, perguntou Nelson Rodrigues:
“Quem pensa assim, e escreve assim, é um canalha? Respondam.” […] “São dois os autores! Vocês têm certeza de que são dois canalhas? E canalhas abjetos?” […] Os marxistas ali presentes juraram que os dois autores eram “canalhas” e abjetos. E, então, só então, alcei a fronte e anunciei: — “Agora ouçam os nomes dos canalhas”. Pausa e disse: — “Marx e Engels”. Fez-se na sala um silêncio ensurdecedor. Repeti: “Marx e Engels, os dois pulhas, segundo vocês”.
Proponho fazer agora o mesmo jogo, sendo certo que, por um lado, quem me lê saberá que quem disse o quê não é quem parece que disse, já que, se assim não fosse, o jogo não teria qualquer interesse, e, por outro, o Google tira muita graça a este tipo de interacções. Dito de outra forma, o jogo está viciado à partida.
As frases que vou citar estão necessariamente fora do contexto, por razões de eficácia do jogo, mas o contexto não lhes modifica a essência. Não posso ser acusado de desonestidade intelectual, já que não pretendo dizer parte da verdade para dar a entender outra coisa – técnica profusamente usada em política.
Feitos estes reparos, adianto algumas citações:
- “O bem comum sobrepõe-se ao bem individual.”
- “Exigimos a nacionalização de todas as grandes empresas que pertençam a trusts (…) uma reforma agrária adaptada às necessidades nacionais (…) a expropriação da terra, sem indemnização, por razões de utilidade pública (…) a abolição da especulação com terrenos (…) um aumento substancial das pensões de reforma (…) a oposição legal a mentiras comprovadas e à sua divulgação pela imprensa (…) a administração comunal dos grandes armazéns (…) a abolição dos rendimentos que não resultem do trabalho (…) o fim da escravatura dos juros.”
- “O socialismo é a ideologia do futuro.”
- “Queremos a vitória dos trabalhadores sobre o lucro sujo.”
- “Ser socialista significa servir o próximo, sacrificar o interesse próprio em prol da colectividade.”
- “Nós estamos do lado do trabalho contra a finança.”
- “A aristocracia (…) nutre-se dos bens do povo. O povo deve reapropriar-se deles.”
- “Naturalmente, já não existe uma raça pura (…). Mas de facto, de felizes misturas, resulta frequentemente a força e a beleza de uma nação. (…) O orgulho nacional não precisa de «delírios» de raça.”
Quem disse o quê?
As primeiras três são extraídas do Programa do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, apresentado em 1920 por Hitler, em Munique. As frases 4 a 7 são da autoria de Joseph Goebbels, o propagandista-chefe do Estado Nazi. A última é de Benito Mussolini, o socialista radical fundador do fascismo, em 1932.
(Mussolini, por razões meramente tácticas – aproximação a Hitler –, viria a publicar anonimamente, em 1938, um artigo na recém-criada revista La difesa della razza, no qual desmentia o que tinha escrito em 1932. Era um cínico.)