I can’t breathe. A urgência de um outro futebol
Três meses depois de uma paragem prolongada, exige-se um futebol diferente. Exige-se um futebol de causa, tal como o foi em muitos momentos da sua história.
Três meses após a paragem das competições futebolísticas em Portugal, o futebol está de regresso com o retomar da I Liga. Nos últimos dias recuperou-se a memória da tabela classificativa e de todas as contingências que marcaram as jornadas anteriores. Afirmou-se o caráter distintivo da época 2019/2020 pelo facto de este ser o campeonato mais longo de toda a história do futebol português. Assim é, efetivamente. Mas esta época está inexoravelmente marcada pelo que sucedeu no dia 16 de fevereiro, no Estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães, quando Moussa Marega, jogador do FC Porto, abandonou o terreno de jogo na sequência de insultos racistas que lhe eram dirigidos. Um dos mais vergonhosos momentos de toda a história do desporto nacional. O árbitro não interrompeu o jogo. Os restantes jogadores continuaram em campo. Os adeptos continuaram os seus cânticos boçais. Daqui resultou uma indignação generalizada, que a espuma dos dias diluiu. Consequência: o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol multou o Vitória de Guimarães, enquanto promotor do evento, em 714 euros por insultos a Marega, e decorre um processo que está em fase de inquérito.
Ironicamente, o retomar do futebol ocorre num contexto de intensas manifestações antirracismo por todo o mundo. Após a morte do afro-americano George Floyd pela polícia de Mineápolis, em 25 de maio, as ruas dos Estados Unidos explodiram num clamor contra o racismo, e em muitos outros países sucedem-se manifestações antirracismo. O universo do futebol também não ficou indiferente ao sucedido e, na recente retoma da Bundesliga, quatro futebolistas, durante os jogos, manifestaram-se pelo assassínio de Floyd: Marcus Thuram, do Borussia Mönchengladbach, ajoelhou-se; Hakimi e Jadon Sancho, do Borussia Dortmund, exibiram nas camisolas a mensagem “justiça para George Floyd”; McKennie, do Schalke 04, usou uma braçadeira de capitão a pedir também “justiça para George Floyd”.
Na sequência destes atos, a FIFA, em comunicado, pede às federações nacionais para serem flexíveis em relação a possíveis castigos aos jogadores que se manifestaram. O presidente da FIFA diz mesmo que esses jogadores “merecem aplausos e não punições”. Causa estupefação que entidades como as federações de futebol, constantemente a exibir slogans antirracismo, equacionem a possibilidade de castigar quem se manifestou contra o racismo. Essa possibilidade resulta dos regulamentos das competições, nos quais os jogadores estão proibidos de exibirem mensagens políticas ou de cariz racial. Entretanto, a Federação Alemã de Futebol, apesar de abrir inquérito à atitude dos jogadores, comunicou que não aplicará sanções, justificando que os princípios desses atos são de combate à discriminação e ao racismo.
Percebe-se o processo de despolitização dos jogadores, numa lógica economicista de os converter em entidades híbridas para consumo mediático da massa de adeptos. Aparentemente inocente, este processo revela-se perverso quando apropriado indevidamente. Vem a propósito o episódio entre o deputado André Ventura e o futebolista Ricardo Quaresma. Na sequência da proposta xenófoba do líder do Chega, de se criar um plano de confinamento específico para a comunidade cigana, Quaresma respondeu: “Olhos abertos, amigos, a nossa vida é demasiado preciosa para ouvirmos vozes de burros.” Em reação, André Ventura considerou lamentável que um jogador da seleção nacional se envolva em política, e apelou à intervenção da Federação. A perversão está precisamente em se considerar que o futebol tem de ser apolítico, e os jogadores seres sem voz, insensíveis às causas cívicas e aos direitos fundamentais, apenas trabalhadores de um espetáculo mercantilizado.
Três meses depois de uma paragem prolongada, exige-se um futebol diferente. Exige-se um futebol de causa, tal como o foi em muitos momentos da sua história. Como se tem afirmado ultimamente, não basta dizer que não se é racista, é imperativo ser-se antirracista. Já não chegam as tarjas contra o racismo, já não é suficiente o hashtag #notoracism da UEFA, nem o título Stop Racism que a FIFA exibe atualmente na sua página web. Nenhuma dessas declarações impediu insultos racistas proferidos desde as bancadas. Da mesma forma que quando um polícia coloca um joelho no pescoço de George Floyd, fá-lo porque se sente social e institucionalmente confortável em fazê-lo, também os adeptos se sentem impunes no enxovalho racista.
No futebol não vale tudo, e desde logo não vale diminuir o adversário pelos sinais diacríticos da cor da sua pele. O racismo é crime, e as entidades que gerem o futebol não podem ficar-se pelas declarações de intenções, protegendo um negócio que se julga imaculado. A Federação Portuguesa de Futebol, que tem a “diversidade e inclusão” como responsabilidade social, faltou à convocatória quando a ela se fez alusão no diferendo que envolveu Ricardo Quaresma. A Liga tem de manter presente o caso Marega e levar o processo até às últimas consequências. Os jogadores não têm de solicitar autorização para pedir justiça por Floyd. Tal como na vida, também no futebol tem de se conseguir respirar.
O autor escreve de segundo o novo acordo ortográfico