O limite e o risco
É esse sentimento de limite, de urgência, que fez tanta gente, em tantos países, manifestar-se. Não “irresponsavelmente”, mas num assumido gesto de coragem cívica.
Vai por aí alguma barulheira por causa das manifestações antirracistas que desceram à rua no passado sábado em várias cidades do país. A extrema-direita protesta porque é racista e, naturalmente, não gostou de ver multidões de jovens irmanadas na sua denúncia. Outra parte da direita declina um antirracismo retórico, mas ataca com igual veemência todos os gestos práticos de condenação do racismo que, aliás, considera que não existe em Portugal. Estamos conversados. Mas há um sector da opinião que se preocupou com o que viu enquanto risco para a saúde pública. E considero que vale a pena, nesta perspetiva, discutir o assunto.
Começarei por dizer que sim, têm razão, não obstante todos os cuidados dos organizadores (em Lisboa vi distribuírem-se máscaras a todos os participantes e todos as usavam) é claro que houve riscos numa manifestação que trouxe uma massa de milhares de pessoas para a rua. Mas eu permito-me perguntar: o que levou milhões de mulheres e de homens no mesmo dia, nas principais cidades da Europa, em muitas da África, da Austrália e da América latina, em praticamente todas as maiores cidades do EUA, ao risco de enfrentar a pandemia para dar voz à sua indignação contra o assassinato de George Floyd?
Seguramente a morte bárbara de um homem negro desarmado e algemado, vítima de lenta asfixia causada pelo joelho de um polícia branco calcando sobre o seu pescoço enquanto num fio de voz que se extinguia ele dizia: “não posso respirar!” Seguramente a ação incendiária e provocatória de um presidente ensandecido que face à vaga de protestos apelava à repressão sangrenta e à guerra civil.
Mas há algo de mais decisivo que, penso eu, fez saltar em uníssono a mola do protesto internacional. O sentimento geral de que há um limite intransponível não só para a violência racista, não só nos EUA de Trump, mas para esse apodrecimento geral que traz consigo todas as formas de violência contra os mais pobres, contra o mundo do trabalho, contra os direitos das mulheres, contra as minorias racializadas, contra as minorias sexuais. Essa violência aparentemente inelutável que prepara a catástrofe climática e ambiental, esse inverno da humanidade que parece ameaçar-nos novamente não só na America first, mas desde o Brasil de Bolsonaro à Índia, às Filipinas, à China do capitalismo de Estado, à Itália de Salvini, à Hungria de Orbán, ao geral arreganho da extrema-direita europeia.
Um ambiente onde se está a formatar de novo, invisivelmente, a banalidade do mal, onde nas redes sociais e em certos media se produz organizadamente um clima de invisibilidade moral conducente à impunidade do abuso e do crime como forma de fazer política ou à indiferença normalizadora perante eles. À abolia e ao medo que matam a capacidade de escolha e historicamente abriram portas às piores formas de opressão.
É esse sentimento de limite, de urgência, que fez tanta gente, em tantos países, manifestar-se. Não “irresponsavelmente”, mas num assumido gesto de coragem cívica. E eu pergunto se lutar contra a vaga montante deste regressismo sinistro, por vezes em circunstâncias limite como esta, não vale a pena algum risco. Aliás, como a pandemia dramaticamente demonstra no Brasil e nos EUA, que saúde pública teríamos num mundo calcado pela violência racista e por essa espécie de fascismo que os Trumps e os Bolsonaros transportam?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico