Curta-metragem
Just the Two of Us: uma viagem de autocarro animada para recordarmos o “cantarolar da cidade”
Quem diria que um dia íamos sentir a falta daquelas intermináveis viagens de autocarro? O drama dos 30 minutos de desespero e engarrafamento na Rua dos Clérigos em hora de ponta ou o caos na Baixa de Lisboa. A realizadora britânica Anna Ginsburg transformou um áudio de uma viagem peculiar nesse transporte público pela Old Kent Road, em Londres, numa animação de 50 segundos que desperta uma nostalgia pelo “cantarolar da cidade” – que agora não consegue ouvir da mesma maneira.
“Cantarolar” é mesmo a palavra mais apropriada. A criadora explicou a história à publicação It’s Nice That: num dia apressado e tipicamente londrino, com o autocarro previsivelmente cheio, uma mulher desconhecida entrou na paragem a seguir à sua e, “enquanto subia os degraus” para entrar, cantava a música Just the Two of Us, originalmente gravada por Grover Washington Jr. e Bill Withers. “Ela sentou-se à minha beira e fechou os olhos. Cantou serenamente e muito devagar, como se estivesse a flutuar por cima de nós, todos esmagados uns contra os outros. O meu corpo inteiro começou a relaxar. Ela cantou sem parar durante 30 minutos e eu comecei a sonhar acordada”, assinala.
A cineasta saiu lentamente “deste estado etéreo de felicidade” e leveza quando se apercebeu de que estava quase a chegar ao destino. Foi aí que decidiu tirar o telemóvel do bolso e registar o momento na forma de um pequeno áudio. Um modesto tributo às pequenas coisas do quotidiano, uma recordação da beleza que pode existir no meio daquele que, de outra forma, seria o stress intolerável de todas as manhãs.
Para a autora, uma viagem de autocarro vulgar pela Old Kent Road é “miserável”, um trajecto lento e angustiante por uma estrada “infernal que nunca acaba”. Mas estes não são tempos vulgares e, durante o confinamento, Ginsburg acabou por ouvir a sua gravação repetidamente, sentindo as inevitáveis saudades destes “encontros interessantes e inspiradores com pessoas que não conheces de lado nenhum”.
Estas saudades fizeram com que desenvolvesse Just the Two of Us, um suspiro por dias em que estarmos “colados às axilas suadas do passageiro ao nosso lado” era o pior que podíamos viver. Ouvimos os sons das sirenes e das portas que se abrem a cada estação. Os olhares de indignação misturam-se com os de indiferença nos rostos minimalistas. Há quem tente apressar o percurso rumo ao trabalho com um par de auscultadores nos ouvidos, há quem leia o jornal, quem converse ao telemóvel. Simultaneamente elemento intruso e figura central de cena, a mulher, com os seus brincos enormes e as suas unhas arranjadas, diverte-se enquanto olha para o que consegue ver a partir da janela. “We can make it if we try! Just the two of us”, canta. É mais um dia normal em Londres. Quem diria que um dia íamos sentir a falta disto?