Por onde começar?
A comunidade artística terá de reflectir no que deve, pode e está disposta a fazer, no contexto complexo de um mundo que vai atravessar tempos difíceis, e porventura mais trágico.
Por onde começar? Creio que é esta a pergunta que os trabalhadores que mais foram afectados pela pandemia se colocam, sabendo que, ao contrário do que sugerem muitas opiniões, estamos a viver um parênteses sem data prevista para fechar. O Estado, principal destinatário desta pergunta, respondeu bem na defesa da saúde e até na educação, e tenta responder com fórmulas novas a situações que envolvem uma grande escala, nomeadamente no que diz respeito ao número avassalador de desempregados que encaixam no perfil do desempregado tradicional. Contudo, houve uma comunidade de profissionais que ficou onde a maior parte deles se encontra há anos: no limbo. São os profissionais da cultura artística – os intermitentes sem estatuto remuneratório –, cuja situação de desqualificação das suas vidas é não só um incontestável facto, mas também e sobretudo um sintoma. O sintoma de uma fragilidade adquirida ao longo de várias décadas a sobreviver numa base de assistencialismo do Estado, que foi até agora a política predominante e da qual resultou nunca se ter construído um sistema cultural sólido.
Podemos, aliás, afirmar que foi o assistencialismo que norteou as formas como os governos centrais encararam o sistema cultural, que, na verdade, nunca se pôde constituir como sistema – dos museus, dos teatros, do cinema, do circo, e de tantas outras produções artísticas. Para constatar isto basta acompanhar os orçamentos dos governos para a cultura desde 2002. Desta forma de encarar a actividade cultural e artística são responsáveis os governos, que não perspectivaram a actividade cultural como essencial à vida quotidiana de todos os cidadãos e, consequentemente, não reconheceram nem protegeram os profissionais que trabalham nas áreas da cultura artística. Paradoxalmente, os públicos e os próprios artistas têm também a sua parte de responsabilidade. Os públicos porque não admitem o risco e a estranheza, preferindo o consumo fácil, e uma parte substantiva da comunidade artística, cujo enquadramento laboral é tão precário que não permite mais do que reivindicações geralmente episódicas, sem projecção a longo termo, o que rapidamente leva estes profissionais a abdicarem do seu próprio reconhecimento pelos governos e públicos.
É importante que reconheçamos que, na actualidade, se o Governo respondeu bem na saúde foi porque, apesar da fragilidade em que há muito se encontrava o SNS, havia uma estrutura de base a que se reconheceu uma sólida profissionalização, estruturas organizativas que se impuseram nas relações com o Governo, e o reconhecimento da sua imperativa necessidade por parte dos cidadãos.
Na área da actividade cultural – em especial da artística –, e pelas suas características formais mais dependentes do investimento público, todos os governos falharam quando não passaram a mensagem, através de acções concretas e a longo prazo, de que a actividade artística de produtores e receptores é fundamental na vida quotidiana. É fulcral numa sociedade democrática uma ponte muitas vezes tensional entre as narrativas do passado e o desejo de futuro, porque é nas relações culturais que se projectam a autonomia dos cidadãos, a actualização do conhecimento, bem como as mais diversas formas de ludicidade. Este processo depende intrinsecamente de um reconhecimento concreto dos seus intervenientes, como produtores fundamentais dos projectos culturais de uma sociedade e, nesse sentido, nunca os actores culturais poderiam ser descartáveis.
Para se chegar a esta situação de abandono que sente a comunidade artística contribuíram, por um lado, as decisões dos governos que optaram por uma lógica de identificação de toda a actividade artística com o entretenimento, idêntica ao consumo indiferenciado de outros produtos, e, por outro, a reacção de algumas comunidades artísticas que, num extremo oposto, se reclamam de tantas especificidades diferenciadas de outros sectores laborais, acabando, involuntariamente, por se afastarem dos seus potenciais aliados, que são tanto as outras comunidades de trabalhadores, como os públicos que haveriam de vir. Esta comunidade tem aspectos muito particulares mas tem também traços profissionais e reivindicativos comuns a outros profissionais, nomeadamente o de ser uma comunidade heterogénea com interesses diversos.
A pergunta inicial – por onde começar? – exige respostas calendarizadas, sendo a primeira e a principal o regresso da cultura à política, o que quer dizer, à ocupação de um lugar central no âmbito da governação do presente, com a firme convicção de que é possível intervir no futuro e para isso é possível e fundamental agir no presente.
Deste novo contexto surgirão respostas capazes de abranger a comunidade artística no seu espectro mais largo – dos trabalhadores temporários aos equipamentos artísticos –, alicerçadas no reconhecimento profissional que esta comunidade deve ter, com critérios inteligentes, transparentes e consistentes. E se a Europa parece ter despertado solidária nos discursos e no financiamento, é imperativo que, urgentemente, inclua nas suas prioridades esta comunidade de profissionais, instituições e organizações da produção e difusão cultural, traduzidas no imediato num investimento financeiro de vulto que repare a situação de abandono e simultaneamente inicie uma estruturação do sistema cultural.
E a comunidade artística terá de reflectir no que deve, pode e está disposta a fazer, no contexto complexo de um mundo que vai atravessar tempos difíceis, porventura mais trágico, e numa altura em que é urgente pensar quais as acções consequentes e necessárias e ter a coragem de descartar as que são dispensáveis. Esta é a parte da política que lhe cabe fazer.
É afinal um caderno de encargos que o Estado e o sector cultural necessitam acordar. Na sua diversidade, terá de ser executado com a coragem de assumir a cultura como área central da governação a partir da qual se tomam as opções de futuro, nomeadamente implementando a autonomia radical das instituições culturais estatais, com uma gestão própria de contabilidade e uma administração pública eficaz e transparente. Ciente do compromisso de assumir o investimento fundamental nos mediadores culturais, na distinção clara entre o que radica no conhecimento lúdico e o que privilegia o estrito consumo, na literacia digital, no trabalho colectivo e na globalização positiva, implicando todos os que, através dos seus recursos de conhecimento e financeiros, podem e devem participar na criação de um sistema cultural duradouro, transversal e sustentável. É um contrato cultural para duas décadas, mas ele é possível e imperativo.