Ricardo Salles “passando a boiada”: ministro do Meio Ambiente brasileiro muda leis ambientais na pandemia
As denúncias da destruição ambiental em curso no Brasil ganham novos contornos de crueldade e insanidade com as declarações de Ricardo Salles agora divulgadas. A miríade de notas, portarias, anúncios oficiais e entrevistas temperam o caldeirão de ataques à cadeia ambiental, incluídos aí, consequentemente, os povos tradicionais da floresta. Os indígenas são os mais afetados com esse caos.
Na mixórdia ministerial ocorrida no dia 22 de abril, da qual o vídeo da reunião foi tornado público na sexta-feira (22/05), o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, aconselha aos seus pares no governo a tirarem proveito do foco da imprensa na covid-19 para “passar as reformas infralegais de desregulamentação” em leis ambientais.
No vídeo documento, Salles afirma: “Nós temos a possibilidade neste momento, que a atenção da imprensa está voltada quase que exclusivamente para covid-19, a oportunidade que nós temos […] é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas que o mundo inteiro cobrou.”
Salles prossegue sugerindo como o governo e seus pares devem atuar: “Então, para isso, precisa ter um esforço nosso aqui.” E detalha: “[…] e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de Ministério da Agricultura, de Ministério do Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços [...]. É de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos.”
O requinte de cruel irresponsabilidade do ministro Salles só não seria pior se algumas dessas medidas de desregulamentação, como o desaparelhamento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), já não tivesse em curso, na data de divulgação do vídeo, ratificando sua política de estímulo às madeireiras ilegais, garimpeiros, grileiros e desmatadores.
Na segunda-feira (11), por exemplo, em sequência ao emprego do decreto de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) para controlar o avanço do garimpo e as queimadas na Amazônia, o Governo Federal atribuiu ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) decisões sobre políticas destinadas à manutenção e fiscalização de florestas públicas. É um golpe explícito à preservação ambiental e à regulação conquistada depois de muitas décadas de luta.
O Decreto n.º 10.347, de 13 de maio de 2020, publicado no Diário Oficial da União, dispõe sobre as competências para a concessão de florestas públicas, em âmbito federal. Segundo o Decreto, o MAPA passa a exercer funções de poder concedente de florestas no termos dispostos no art. 49 da Lei n.º 11.284, de 2006.
As disposições da Lei n.º 11.284, que agora passam a estar sob comando do MAPA, regulamentam a Gestão de Florestas Públicas para a Produção Sustentável de produtos madeireiros, não madeireiros e de serviços relacionados à natureza, como os esportes de aventura. Além disso, incluem a gestão do Serviço Florestal Brasileiro (SBF) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF), que resultaram em boas políticas para a Amazônia durante as últimas duas décadas.
A nova decisão do governo revive a polêmica iniciada no início do mandato de Bolsonaro, quando tentou transferir atribuições do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para a pasta da agricultura, medida que foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que entendeu que a decisão criava um conflito de interesses entre os setores envolvidos.
Especialistas e ambientalistas defendem que a dobradinha entre MAPA e GLO, que será coordenada pelo Conselho Nacional da Amazônia (CNA), dirigido agora pelo vice-presidente general Mourão, sem a consulta aos estados e municípios amazônicos, pode implicar consequências catastróficas para a região.
IBAMA e ICMbio na linha de frente
A ação do IBAMA e ICMbio em Uruará, na Região da Transamazônica (oeste de Altamira), 1021 quilômetros distante de Belém, é outro episódio na linha de montagem destrutiva de Ricardo Salles. O caso Uruará ganhou notoriedade pelas demissões dos agentes responsáveis pela operação e a crítica do Executivo ao desempenho da ação. Na ocasião foram destruídos escritórios, veículos e pontes usados ilegalmente pela grilagem e pela garimpagem em terras indígenas. Após a ação, que cumpria o seu papel legal de fiscalização, foram registradas agressões físicas contra os agentes do IBAMA.
Acompanhado de apenas dois policiais da Força Nacional, o fiscal do IBAMA, Divanildo dos Santos Lima, deslocado da base operacional da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) na Terra Indígena Arara, em Altamira, sobrevoou de helicóptero a terra indígena Cachoeira Seca e localizou um acampamento de extração ilegal de madeira. Segundo uma nota da Associação divulgada no dia seguinte, seis de maio, durante a abordagem da equipe, os madeireiros abandonaram quatro caminhões e dois tratores. Um dos caminhões estava com a chave na ignição e foi removido do local; os demais foram incendiados.
O artigo 101 do decreto 6.514, de 22 de julho de 2008, diz que, ao constatar a infração ambiental, o “agente autuante, no uso do seu poder de polícia”, poderá apreender e “destruir ou inutilizar produtos, subprodutos e instrumentos da infração”. É com base nesse decreto que os agentes destroem máquinas e equipamentos de madeireiros e garimpeiros, quando não podem removê-los do local. Foi o que ocorreu em Uruará.
O presidente da Associação dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (ASIBAMA/PA), William Fernandes, diz que “ocorrências como essa de Uruará têm se sucedido numa velocidade cada vez maior, desde 2017”. E o biólogo Alex Lacerda de Souza, vice-presidente da associação, reafirma que “os ataques tornaram-se mais frequentes, quase uma rotina, nos últimos meses, construindo-se um quadro que preocupa, sendo um risco a mais para os agentes de fiscalização em campo”.
Na noite do dia da operação, a caminho de Uruará, Divanildo e os policiais foram impedidos por um grupo de manifestantes de seguir viagem. O fiscal foi ferido na cabeça por uma garrafa. O incidente teria sido surpresa se uma manifestação de enfrentamento às fiscalizações, programada para o dia 30 de abril, não tivesse sido proibida por ato do Tribunal de Justiça do Estado, que entendeu serem ilegais as intervenções de madeireiros na área, por causarem riscos de transmissão da covid-19 à população indígena.
A nota da Associação dos Servidores do IBAMA, ASIBAMA, exigiu “proteção e garantia de segurança nas operações de fiscalização e combate às práticas ilícitas que prejudicam o meio ambiente”. Diz ainda que o IBAMA e o próprio Ministério do Meio Ambiente têm o dever de garantir essa segurança aos servidores em campo.
A nota diz ainda que, desde o ano passado, tanto o presidente do IBAMA, Eduardo Fortunato Bim, quanto o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, têm contribuído para inibir a destruição de bens apreendidos em atividades ambientais ilícitas, embora isso esteja previsto legalmente. Tem ocorrido, inclusive, tentativas de modificar a norma do decreto 6.514, de 2008, o que acaba por incentivar “protestos contra as operações de fiscalização” e combate aos crimes ambientais. Com tom de repúdio, a ASIBAMA diz ainda que “as palavras do governo servem de justificativa para atos de violência contra agentes ambientais federais”. E que é grande o risco que “os servidores correm na execução de suas atividades”.
Além dos protestos, incêndios, agressões físicas em curso, o Ministério do Meio Ambiente detém, nesta gestão, um recorde de abertura de processos de demissão de funcionários do IBAMA e do ICMBio quando estes atuam contra os infratores ambientais. A discordância entre órgão e servidores perdura aumentando o clima de conflito entre os próprios servidores, que via de regra serve de pauta para que os robôs do “Gabinete do Ódio” alimentem as redes sociais com memes e fake news sobre a atuação negativa do IBAMA e do ICMbio na proteção ambiental da Amazonia.
Em três décadas, o IBAMA não havia sofrido uma mudança tão radical como a que a gestão Salles empreende. No dia 28 de fevereiro foram substituídos 21 dos 27 superintendentes regionais do órgão.
Em 14 de abril deste ano, foi demitido o diretor de Proteção Ambiental do IBAMA, Olivaldi Alves Borges de Azevedo, sendo substituído por outro militar, Olimpio Magalhães. A Ascema nacional protestou na oportunidade, afirmando que se tratava de uma retaliação do governo federal contra funcionários de carreira do IBAMA que atuaram no combate ao garimpo ilegal da Terra Indígena Apyterewa, localizada em São Félix do Xingu, no Pará. A nota afirmou que “o desmonte da fiscalização ambiental impacta diretamente na contaminação dos povos indígenas e no avanço da pandemia de covid-19”.
O governo reage, sempre, por impulsos ou soluços que passam rapidamente, até que novo episódio aconteça. O decreto valerá por apenas 30 dias, entre a 11 de maio e 10 de junho deste ano. As Forças Armadas atuarão em ações preventivas e repressivas contra delitos ambientais. Chama a atenção o artigo terceiro que atribui “ao ministro da Defesa definir a alocação dos meios disponíveis e os comandos que serão responsáveis pela operação”, em “articulação com os órgãos de segurança pública” e “entidades públicas de proteção ambiental”. Explicitamente, diz que, na vigência do decreto, “os órgãos e as entidades públicas federais de proteção ambiental” (leia-se IBAMA e ICMBio) serão “coordenados pelos comandos a que se refere o art. 3.º” do decreto”. Isto é, as Forças Armadas.
Forças Armadas e Ministério da Agricultura
Ao mesmo tempo em que os funcionários do IBAMA e do ICMBio protestavam contra o caso de Uruará, o Governo Federal publicava no Diário Oficial o decreto 10.341, autorizando o emprego das Forças Armadas “na garantia da lei e da ordem e em ações subsidiárias na faixa de fronteira, nas terras indígenas, nas unidades federais de conservação ambiental e em outras áreas federais nos Estados da Amazônia Legal”. O decreto vai vigorar por 30 dias.
O emprego da GLO na Amazônia foi a principal reação de Brasília depois de novo ataque a um fiscal do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), em Uruará, no Pará, no dia 5 de maio.
A operação, batizada de Verde Brasil 2, tem como foco o combate ao desmatamento ilegal e focos de incêndio na Amazônia, e conta com o investimento de R$60 milhões para financiar 100 viaturas, 20 embarcações, 12 aeronaves e um efetivo de 4200 pessoas, das quais 400 são agentes policiais, segundo informou o ministro Fernando Azevedo e Silva (Defesa) durante a coletiva de imprensa realizada em 11 de maio, em Brasília.
Os militares atuarão na prevenção e repressão aos delitos ambientais até 10 de junho deste ano. Chama a atenção o artigo terceiro do decreto, que atribui ao ministro da Defesa o poder de “definir os meios e os comandos responsáveis pela operação”, articulada com os órgãos de segurança e “entidades públicas de proteção ambiental”. E acrescenta: “Os órgãos federais de proteção ambiental (leia-se IBAMA e ICMBio) serão coordenados pelos comandos a que se refere o artigo 3.º do decreto. Isto é, pelas Forças Armadas.”
O general Hamilton Mourão, que encabeça o CNA, declarou na segunda (11), durante a coletiva de imprensa, que é necessário a revitalização de recursos do Fundo Amazônia, que se encontram congelados no BNDES, para custear as operações de fiscalização e monitoramento na região. Além disso, Mourão disse que o emprego de GLOs deve ser feito sazonalmente, para evitar que garimpeiros, madeireiros e posseiros voltem à atividade.
Um claro exemplo da ineficácia da operação Verde Brasil 2 foi a ação deflagrada na localidade de Nova Ubiratã, no Mato Grosso, no dia 11 de maio. Duas semanas antes, agentes do Ibama e ICMBio já haviam estado na região. A incursão que movimentou 80 agentes, dois helicópteros e dezenas de viaturas contrariou as recomendações do IBAMA, que apontavam as proximidades da Estação Rio Branco Ranuro, no interior do Parque Indígena do Xingu, como foco das ilegalidades.
Apesar do espetáculo, acompanhada pela imprensa, a operação foi encerrada “sem nenhum procedimento administrativo executado pelo IBAMA, tendo em vista não ter sido identificada nenhuma demanda para tal”, de acordo com o relatório do órgão ambiental.
A mesma medida foi adotada em agosto de 2019, durante a crise das queimadas na Amazônia, episódio que colocou o Brasil em uma posição delicada no cenário global. Durante o emprego da primeira GLO na Amazônia, foram investidos R$124,5 milhões em efetivo e equipamentos para conter o avanço do fogo na região – o custo da GLO superou o orçamento de R$117 milhões do IBAMA em 2019. No entanto, a medida, que vigorou até outubro do mesmo ano, não impediu o avanço da destruição da floresta, o que pode ser observado na explosão de garimpos registrada desde janeiro deste ano.
Os alertas de desmatamento de janeiro a abril de 2020 subiram 51,45% e chegaram a cobrir uma área de 796 km2, de acordo com informação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), um recorde para o período. Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, falou aos jornalistas reunidos em Brasília na segunda-feira (11/05) que o objetivo da missão é não deixar esse percentual aumentar. Segundo ele, o governo busca uma redução mais consistente do desmatamento para 2021. Para ele, a GLO veio em boa hora, pois o IBAMA sofre com desfalques em seu efetivo – consequência do enfraquecimento do órgão promovido pelo governo federal desde o início do mandato de Jair Bolsonaro. No entanto, Salles responsabilizou as gestões anteriores por esse problema.
As denúncias, do antes e do agora, ganham novos contornos de crueldade e insanidade com as declarações de Ricardo Salles divulgadas do encontro ministerial, na sexta-feira (22/05). As cobranças dos críticos dessa gestão sucedem-se também em relação à proporção de incêndios, desmatamentos, grilagens, e dos processos que parecem cair no esquecimento também da imprensa, incluindo as multas anuladas em processos sem nenhuma transparência. A miríade de notas, portarias, anúncios oficiais, entrevistas e portarias temperam o caldeirão de ataques à cadeia ambiental, incluídos aí, consequentemente, os povos tradicionais da floresta. Indígenas são os mais afetados com esse caos.
Marcos Colón é doutor em estudos culturais pela Universidade de Wisconsin-Madison, professor do Departamento de Línguas Modernas e Linguística da Universidade Estadual da Florida e diretor do documentário Beyond Fordlândia