Aconselhamento científico: um suporte das democracias
O aconselhamento científico não equivale a uma espécie de tecnocracia em que as decisões são tomadas por um grupo de especialistas. Mas, se não contarmos com ele, teremos mais decisões erradas.
Alem de médicos, enfermeiros e assistentes hospitalares – na primeira linha do combate ao coronavírus –, estes tempos de pandemia trouxeram-nos outros protagonistas habitualmente afastados dos holofotes. Epidemiologistas, virologistas, imunologistas e outros especialistas de diferentes áreas têm assumido um papel muito importante nesta crise, funcionado como um suporte essencial do poder político, ajudando-o a tomar as melhores decisões. Em alguns casos, bem conhecidos, como o Reino Unido ou os Estados Unidos, convencendo-o mesmo a reverter medidas e intenções potencialmente perigosas.
Em geral, o seu contributo tem sido bem recebido, nomeadamente pela população, que, num período marcado pela incerteza, tem mostrado respeitar e valorizar decisões assentes em conhecimento sólido. Mas nem sempre. Há quem considere que lhes está a ser atribuído demasiado poder face a outros grupos representativos da sociedade. Esse receio, a meu ver, resulta de um equívoco em relação ao que é o aconselhamento científico e o papel que este desempenha nas sociedades modernas.
O aconselhamento científico não equivale a uma espécie de tecnocracia em que as decisões são tomadas por um grupo de especialistas. O seu papel é de suporte. O conselho será sempre ponderado considerando as implicações éticas da medida e as restrições, orçamentais, mas não só, da aplicação da mesma. As decisões resultantes da avaliação de todos estes fatores devem depois ser sempre explicadas aos eleitores, principalmente quando não coincidem com o proposto pelos especialistas.
A tradição de recorrer a cientistas nas tomadas de decisão não começou com o coronavírus. Está presente há muito na prática política, tendo começado a enraizar-se nos países anglo-saxónicos, estendendo-se depois, com variantes, ao resto do mundo.
Em países como o Reino Unido, a Austrália e a Nova Zelândia tende a ser mais individualizada, centrada num rosto, uma figura de mérito reconhecido, que confere credibilidade. Noutros países, como Portugal, onde não existe esta figura do conselheiro principal, esse papel cabe a grupos de especialistas, por via de institutos públicos, comités de conselheiros, academias e sociedades científicas. Há ainda casos, como o da Alemanha, em que os dois modelos começam a coexistir.
A própria Comissão Europeia sempre teve uma tradição de aconselhamento científico, sobretudo centrada em comités de aconselhamento. O antigo presidente da Comissão, Durão Barroso, nomeou a primeira Chief Scientific Advisor, a professora Anne Glover. Carlos Moedas, o anterior comissário europeu da Ciência e Inovação, criou um mecanismo de aconselhamento científico (em cuja construção também trabalhei durante três anos, na Comissão), com sete conselheiros. Entre eles, a portuguesa Elvira Fortunato.
Quanto a Portugal, apesar de como referi já existir esta tradição, só tem a ganhar em valorizar cada vez mais o aconselhamento científico. Em todas as áreas. Em janeiro de 2019, o Conselho Estratégico Nacional (CEN) do PSD publicou um documento intitulado: “Ensino Superior – Uma Estratégia para a Década”. E vale a pena recordar o que lá se dizia, um ano antes do coronavírus, sobre o aconselhamento em políticas públicas: “Nos dias de hoje, em que os decisores políticos são na maior parte das vezes confrontados com assuntos de extrema complexidade (por exemplo, decisões face ao desenvolvimento de novas pandemias, novas ameaças relacionadas com a qualidade alimentar), a evidência científica assume um papel primordial.”
O aconselhamento científico não vai substituir os representantes democraticamente eleitos dos cidadãos nas tomadas de decisão. Mas, se não contarmos com ele, teremos mais decisões erradas.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico