O medo num país de bufos
Passámos de um estado de emergência para o estado de calamidade e não há maneira de nos livrarmos daquele tom de censura na voz dos jornalistas que fazem directos a partir de uma qualquer praia.
Não é intelectualmente honesto afirmar que somos um país de bufos, isto porque o nosso país é tudo e não é nada. É um país coerente sem o ser. Existem muitos países dentro deste em que vivemos, muitas pessoas e muitas classes. Bem, classes são cada vez menos e mais antagónicas, cada vez mais vivemos entre os ricos e os pobres, sendo que estes são a clara maioria. A razão deste título advém do facto de vivermos muito do som das palavras orelhudas que vão sendo desenhadas calmamente nos rodapés dos noticiários, vociferadas vezes sem conta por quem nos conta histórias em vez de nos relatar notícias. Os sintomas atingem tanto as televisões como a imprensa escrita. Passámos de um estado de emergência para o estado de calamidade e não há maneira de nos livrarmos daquele tom de censura na voz dos jornalistas que fazem directos a partir de uma qualquer praia.
Parece que já não vamos ser obrigados a ouvir mais reprimendas e sermões dos pivôs de televisão, o que me parece fantástico, isto porque já tenho idade suficiente para não levar raspanetes colectivos de alguém que não foi mandatado para tal. Aliás, não sei onde se perdeu aquela coisa que achávamos ser o normal que é o jornalista dar notícias, descrevê-las, contextualizá-las e ajudar na sua interpretação. Não julgar, insinuar nem deixar verter a sua opinião pessoal no texto que está a transmitir. Não sou jornalista, falo apenas na qualidade de um telespectador, ouvinte de rádio e leitor de jornais.
Nesta fase de desconfinamento, o sentimento de autocensura e “acusa cristos” é exponenciado pelo maior número de pessoas que anda na rua. Coisa estranha essa de andar na rua. Apesar de apenas ser obrigatório andar de máscara nos transportes públicos, espaços fechados e outros que tais, sinto mais vezes do que gostava o olhar de reprovação daqueles que me vêem na rua sem máscara. Gosto de imaginar os pensamentos que acompanham aqueles olhares: “Aquele não está a cumprir. Que pouca vergonha!”. Se acompanhadas, essas pessoas transmitem este pensamento à pessoa mais próxima. É curioso perceber a facilidade com que nos deixamos controlar e amedrontar para além do razoável. Também não é raro assistir ao apontar de dedo das pessoas que aleatoriamente vão falando a pedido dos repórteres: “Vejo muito gente a não cumprir, ainda ontem de manhã não faltava gente na praia.” Ou, então: “Ainda deveria ser mais apertado, as praias nem deveriam abrir”. Quem lê o que digo pode facilmente identificar como verdadeiras as minhas palavras porque estamos todos cansados de ouvir dizer que este não faz e aquele não cumpre.
O medo não é justificação para tudo. Não é justificação para esta obsessão pelas praias e pelo seu uso, levando a que muitos se sintam pecadores mal põem o pé na areia. Este Estado securitário que gostava de colocar drones a vigiar as praias e que vai ter a Polícia Marítima a controlar os banhistas é o mesmo que nunca quis fechar fábricas onde centenas de trabalhadores passam o dia amontoados no mesmo armazém e se deslocam, colados uns nos outros, dentro de um vagão de um comboio sobrelotado de gente rija que não está susceptível a contrair o vírus com certeza. Aliás, suprimiu vários comboios, diminuiu a oferta para que o povo que trabalha se pudesse aconchegar mais neste momento de desassossego.
É preciso ser cauteloso, mas nada mais do que isso. Não nos podemos fechar eternamente e sair somente para dar o impulso necessário à economia, para que o índice PSI20 não caia muito, impossibilitando assim os barões de distribuir os habituais dividendos.
Desconfinem a vida! Não quero crer que somos um povo que facilmente abre mão do que é seu por direito.