Já não precisamos de George Marshall, vamos fazer o nosso plano de recuperação europeia
Se as instituições europeias o não conseguirem fazer até ao final do ano tal será uma tragédia para a Europa, já que não podemos chamar George Marshall para fazer um novo Plano. O futuro da União Europeia está nas mãos dos que, neste momento, a dirigem. Saberão estar à altura do desafio?
A Euopa pós-1945 e o Plano Marshall
Durante anos invocou-se a necessidade dum Plano Marshall sempre que era preciso actuar com força e determinação para se construir ou reconstruir um modelo ou uma ordem económica. Apenas umas breves recordações. Quando em 1945 terminou a 2.ª Guerra Mundial grande parte da Europa e da Ásia estavam destruídas e devastadas. Na guerra houve vencedores e vencidos mas, após os armistícios de paz, todos, vencedores e vencidos, estavam praticamente na mesma situação: destruição, caos e pobreza. Com uma única excepção, os Estados Unidos da América, que estavam do lado dos vencedores e aonde a guerra não tinha chegado. O General George Marshall, que tinha sido o Chefe de Estado Maior do Exército dos Estados Unidos durante toda a 2ª Guerra Mundial, foi Secretário de Estado do Presidente Harry Truman de 1947 a 1949 e concebeu o plano para recuperar a Europa, de forma a que se transformasse num Continente de paz e liberdade após três guerras sangrentas (1870, 1914 e 1939), tendo anunciado em 1947 em Harvard o que chamou “Plano de Recuperação Europeia”, dizendo que tinha sido concebido “contra a fome, o desespero e o caos” na Europa, principalmente na Alemanha Ocidental, e também para reactivar a economia americana no pós-guerra.
O Plano, que veio a ser conhecido pelo seu nome, consistiu, essencialmente, em ajudas a fundo perdido em bens e equipamentos concedidos durante 4 anos (1948 e 1951) a 16 países europeus que receberam um valor actualmente equivalente a cerca de 120 mil milhões de Euros para a sua reconstrução (cerca de 1,2 % do PIB americano), de que 30% foram reembolsados após 30 anos de período de carência e o restante foi depositado nas moedas nacionais num denominado Fundo de Compensação para ser usado para empréstimos de longo prazo e juros favorecidos às empresas, principalmente para as pequenas e médias. A orientação política que esteve na base do Plano Marshall impunha que a reconstrução europeia fosse feita de forma coordenada. Esta foi a origem da criação em 1948 da OECD (então com a designação de Organização para a Cooperação Económica e Desenvolvimento) com a finalidade de gerir e aplicar o Plano Marshall. E, quando os seus objectivos iniciais estavam já alcançados, a organização foi transformada em OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) com um objecto mais alargado e tem hoje 37 países membros de todo o Mundo. Por esta fantástica visão George Marshall justamente recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1953. Pode dizer-se que a ideia de integração europeia iniciou-se a partir do Plano Marshall, sendo o primeiro passo a gestão integrada do carvão e do aço. Depois, passo após passo, após tantas etapas intermédias, chegou-se à União Europeia como a conhecemos hoje.
Desta página da História nada há hoje a copiar mas importa reter uma lição de vida colectiva que deve perdurar: na desgraça não há vencedores e vencidos, ricos e pobres, imunes e infectados, pois para sair duma situação de “fome, desespero e caos”, qualquer que seja a causa, ou se salvam todos ou, se apenas alguns se querem safar não lhes restarão condições para beneficiarem de privilégios e de ganhos rodeados de perdedores desesperados. Esta é a lição que os que na Europa de hoje, por terem contas equilibradas e se julgam a salvo das desgraças dos seus pares, quaisquer que sejam as causas, tem de aprender, antes que a construção europeia iniciada pelo Plano Marshall termine. Mas para tal é preciso visão larga e não vistas curtas.
A Europa pós-2020 e o nosso novo plano de recuperação europeia
É meritório que os 27 Países membros da União Europeia reunidos no Conselho Europeu tenham aprovado, num primeiro momento, a proposta do Eurogrupo dum conjunto de apoios financeiros de emergência essencialmente baseado em injecções de liquidez do BCE, a que se juntam linhas de crédito do BEI, o novo programa SURE para o emprego da Comissão Europeia e a almofada de segurança do MEE a que cada país membro pode recorrer até 2 % do seu PIB.
Assim, conseguiram fugir à discussão estéril e maniqueísta de emitir Eurobonds para financiar uma emergência e que, inevitavelmente, iria conduzir a um impasse destrutivo da unidade europeia, dadas as posições extremadas da Itália e dos Países Baixos, ambos países fundadores das Comunidades Europeias mas agora em campos opostos. De facto, alguns líderes europeus, quer no centro quer na periferia, estão tão fragilizados nos seus países que não aguentam uma ligeira brisa, quanto mais um tsunami que a discussão da mutualização de riscos envolve para ambos os lados da barricada, tanto mais que as memórias e recriminações da crise de 2010-2015 estão ainda muito presentes.
Após ultrapassar esta fase de emergência com uma solução pragmática e neste momento suficiente, o Conselho Europeu foi capaz de rapidamente chegar a acordo para criar um novo Plano de Recuperação Europeia (PRE), a que alguns quererão chamar Fundo, ainda que falte a Comissão Europeia propor em pormenor todas as suas características e o seu financiamento. Desta vez a decisão foi de iniciativa dos europeus e, para garantir a sua rápida entrada em execução, concordaram desde logo que, para evitar maiores demoras burocráticas, o PRE seja integrado ou acoplado ao corrente Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para 2021-2027. É obvio que tem de ser um Plano a que todos os países queiram aderir, para bem de todos e de cada um, e irá certamente ser aprovado em tempo útil até ao final de 2020. E esta semana surgiu a grande novidade muito positiva que o tandem Alemanha/França se reconstituiu para garantir metade da verba prevista do Plano de Recuperação Europeia, o que significa que os anti-solidários, com a Holanda sempre em destaque, ficam sem argumentos.
A crise de 2020, originada com a pandemia da covid-19, a todos aterrorizou, espalhou-se na Europa de forma que ninguém sabe explicar e vai demorar a ser superada, pois podem surgir novas vagas, não será rápido o processo de criação de imunidade generalizada, para além de ainda não haver vacinas e tardar a aprovação de tratamentos específicos comprovados. Os danos desta depressão global na sociedade, na economia, no emprego e na psique das pessoas serão profundos e temos de os ultrapassar e recuperar os seus efeitos, sejam breves ou prolongados, definitivos ou recuperáveis.
Desta vez não se pode dividir a Europa entre os que se portaram bem e os que se portaram mal (seja qual for o critério de bem e mal que queiram escolher), não há o chamado “risco moral”. Como temos de sair disto juntos faz sentido termos um único Plano de Recuperação Europeia, concebido, coordenado e financiado de forma unificada, devendo recair na Comissão Europeia todas essas responsabilidades, obviamente sob a tutela do Conselho e do Parlamento. Sejamos pois serenos, ponderados e equilibrados, não é fácil definir instantaneamente os pormenores e, embora haja quem ache que o problema (o diabo) estará nos detalhes, é preciso gastar algum tempo a discutir os montantes, o peso dos empréstimos e dos subsídios, o impacto nas Dívidas Públicas, os prazos, os custos e outras condições, pois regras serão necessárias já que ninguém quererá que se atire dinheiro pelas janelas de 27 capitais europeias. No entanto, mais do que os detalhes das condições financeiras importa discutir onde se vão aplicar estes fundos, valendo a pena gastar mais tempo e profundidade a discutir a agenda estratégica, geopolítica e global da Europa. Os detalhes financeiros, por muito importantes que sejam, e são, terão de ser aprovados por unanimidade e, por isso, deve discutir-se primeiro o que se vai fazer com tantos biliões. Vale a pena discutir, no fundo, para onde os povos europeus querem que vá a União Europeia e onde vamos estar no futuro, pois esta crise não nos fará voltar aos paradigmas do passado, pois está a atirar-nos de um dia para o outro para a frente, para um desconhecido a que já chamam o “novo normal”.
Esse é, aliás, o objectivo da proposta Conferência sobre o Futuro da Europa, prevista para 2020-2022, reflexão agora tornada imprescindível no quadro do “novo normal” que se inicia e que irá dar mais relevo às agendas climática e digital e a outros temas essenciais, como a defesa da democracia e da convivência cultural e a redução das desigualdades. Aliás, também está pendente o debate estratégico, apontado para o 2º semestre de 2020, sobre as relações com África e a nova cimeira UE-União Africana onde, entre outros temas vitais para o futuro da Europa, terá um lugar relevante analisar as oportunidades que o mercado africano – o único mercado mundial com crescimento demográfico – traz às empresas europeias e as consequências e os riscos para a Europa das futuras migrações de jovens africanos em busca de trabalho, que provavelmente serão de maior dimensão que as de 2015, perante os estragos que a pandemia e a debacle dos preços das matérias primas acarretarão para as economias, o emprego e a desocupação em África.
Desde o início de 2018 que os Países membros da EU se defrontam para definir o montante do QFP 2021-2027, já sem a presença do Reino Unido, mas também sem solução consensual, pois temas como a emergência climática e as migrações trazem muitas divisões que se juntaram às pré-existentes. No início de 2020 ainda permanecia a proposta de 1,07 % do Rendimento Nacional Bruto da UE27, que a larga maioria dos países não aceitou. A partir daí iniciou-se a discussão de décimas e centésimas do RNB, os famosos detalhes, mostrando a todo o mundo que a União se esgotava em minudências, ainda que com significativa tradução financeira. A vinda do vírus deitou por terra tão limitada visão e a discussão do montante subiu de patamar, pois ninguém compreenderá que aquela proposta não seja revista pelo menos para o dobro, tal a dimensão dos problemas e das novas visões para o futuro da Europa, se se quer manter unidade na UE e que a UE desempenhe um papel significativo no mundo.
Para acontecer a recuperação europeia, afectada pela depressão que a pandemia da covid-19 provocou, a discussão final do Conselho Europeu sobre o QFP 2012-2027 não pode reduzir-se à questão de compensar a perda da contribuição que o Reino Unido pagava e terá de se centrar na avaliação da dimensão necessária para a recuperação e para a construção do “novo normal” em que vamos entrar, contando também com os fundos para o novo Plano de Recuperação Europeia agora aprovado. Mais do que detalhes, as questões vitais são agora estratégicas e relacionadas com o futuro e não apenas como arranjar fundos para pagar as carências sanitárias que a covid-19 veio revelar e retomar a actividade económica tal como estava antes da pandemia.
Se as instituições Europeias o não conseguirem fazer até ao final do ano tal será uma tragédia para a Europa, já que não podemos chamar George Marshall para fazer um novo Plano. Aliás, do outro lado do Atlântico já não há quem se preocupe em nos acudir. O futuro da União Europeia está nas mãos dos que, neste momento, a dirigem. Saberão estar à altura do desafio?