A crise e os mundos possíveis

Isto não está para brincadeiras e se nada fizermos o futuro será sombrio. Para evitá-lo e pensar em soluções, devemos olhar para os mundos possíveis contidos na realidade que enfrentamos.

O filósofo americano Nelson Goodman chamou a atenção para os “mundos possíveis que estão dentro do mundo real”. Numa crise sistémica, mais importante do que prever o futuro, que ninguém sabe o que vai ser, é olharmos para esses mundos possíveis que estão dentro da realidade sombria que vivemos e encontrarmos formas de minimizar os riscos que se nos colocam.

Quando olhamos hoje para o mundo, os números da crise são devastadores. As pessoas com fome duplicaram em poucos meses; os desempregados crescem e só nos EUA, no último mês, foram 30 milhões; as perdas no PIB mundial passam os nove biliões de dólares, isto é, perdemos já uma Alemanha e um Japão juntos; o índice VIX, que mede a volatilidade dos mercados, bateu o recorde em Março; o mercado de equities caiu 30%; o PIB da UE vai cair este ano 7,4%, a maior queda da sua história; as previsões de Bruxelas para Portugal são de uma queda de 6,8%, uma das maiores de sempre e que se aproxima das quedas históricas de 1936 (7,6%) ou 1914 (8,4%).

Quer dizer: isto não está para brincadeiras. Se a UE não se apressar a encontrar com os Estados-membros um pacote significativo para salvar a economia e se estes não encontrarem as políticas macroeconómicas adequadas, o futuro será sombrio. Para evitar isso e pensar em soluções, devemos olhar para os mundos possíveis contidos na realidade que enfrentamos.

O primeiro é o da incerteza prolongada. Esta incerteza advém do coronavírus, das suas múltiplas faces, da possibilidade de novas vagas até uma vacina aparecer. O único refúgio para a incerteza é a ciência. Nos últimos três meses foram publicados cerca de 7000 artigos científicos só sobre a investigação deste vírus. Esta resposta é impressionante. O método científico exige rigor, confrontação de hipóteses, validação cruzada da investigação, humildade no trabalho e ambição nas respostas. Esta investigação vai marcar a história da ciência, torná-la mais aberta, com maior rapidez na disseminação da informação e maior cooperação e entreajuda dos cientistas a nível mundial.

O problema é que a ciência escolhe o caminho da colaboração, mas algumas lideranças políticas escolhem a confrontação, as guerras ideológicas e comerciais, o nacionalismo das vacinas, para poderem dizer que “ganharam”. Fazem um jogo de soma nula, num caso de saúde pública global, o que é irracional. E isso injecta mais incerteza num mundo já de si incerto. Como disse o filósofo alemão Kant: “O mundo é governado pela paixão, pela irracionalidade e por males periódicos.” Isto acontece hoje como há 200 anos atrás, mas também aqui há que mudar e o exemplo da UE, que construiu uma coligação internacional para financiar uma nova vacina, é um belo exemplo.

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E tudo a pandemia levou: por toda a parte, a covid-19 trouxe um colapso simultâneo da oferta e da procura como nunca tinha acontecido EPA/Juan Ignacio Roncoroni

O segundo é que vivemos num mundo com excesso de informação e défice de pensamento. Nunca como hoje tivemos tanta informação acumulada. Só nos últimos cinco anos ela cresceu mais de 25 vezes. O problema é que não estamos a conseguir transformar a informação em pensamento e isso diz tudo. Fomos incapazes de prever a brutal erupção do terrorismo em 2001 com o ataque às torres gémeas de Nova Iorque; a crise financeira de 2007/8; a erupção das revoltas árabes de 2011; a covid-19. Há uma razão, entre outras, para isto: damos muita ênfase nas nossas sociedades à economia e às finanças, que são sem dúvida muito importantes. Mas há que dar a devida atenção às Ciências Sociais como a Sociologia, à Biologia, à Epidemiologia e às Ciências da Saúde e muitas mais. São vitais para pensarmos a complexidade do mundo e sermos capazes de identificar e antecipar os riscos. Bombardeados continuamente por uma informação massiva, temos que ser capazes de pensar e discernir as tendências estruturais que marcam a mudança.

O terceiro é a economia zombie. A covid-19 trouxe um colapso simultâneo da oferta e da procura como nunca tinha acontecido. O choque foi brutal para as empresas que operam no mundo físico, em especial a aviação, a indústria, os transportes, o turismo, a restauração. Ao mesmo tempo, esta crise potencia as companhias digitais que já antes estavam num processo de crescente valorização. A covid-19 trouxe o darwinismo em força para a economia, vai exterminar os menos capazes, os menos competentes, os mais vulneráveis e vai cavar um fosso entre ganhadores e perdedores, acentuando a divisão entre o mundo físico e digital. Isto não significa que todos os operadores do mundo físico perdem e os do digital ganham. Não será assim e um sistema híbrido vai evoluir. Mas é muito importante proteger as pessoas e o emprego, em particular os mais vulneráveis, porque a crise amplifica as desigualdades e numa sociedade democrática a desigualdade extrema é tóxica.

Mas o problema é que durante bastante tempo a economia será uma espécie de zombie, uma morta-viva que vai recuperar lentamente, a funcionar parcialmente, com a procura em baixa, o mercado semi-paralisado, o decrescimento antes do crescimento, a produtividade baixa e a dívida das empresas, das famílias e do Estado a subir. E como disse uma vez o economista Hyman Minsky: “A dívida causa fragilidade.” Se não existir um significativo pacote europeu para salvar a economia, proteger as empresas que são viáveis e proteger o emprego, os tempos vão ser difíceis. E isso é exponenciado pela queda do investimento e a fuga dos investidores, cada vez mais avessos ao risco causado pela incerteza global, e pela queda do comércio mundial e a sua fragmentação, o que torna a recuperação ainda mais difícil. Para responder a isso Portugal tem que fazer das tripas coração, pugnar pela ajuda europeia mas desenhar políticas públicas apropriadas para evitar que a economia entre em coma.

Neste sentido, o país tem que desenhar e pôr em funcionamento projectos-âncora capazes de evitar o colapso e transformar a economia. Isso passa por um grande projecto para completar as infra-estruturas físicas indispensáveis, que seja uma alavanca para a indústria da construção. Passa por completar as infra-estruturas digitais e acelerar a transição digital apoiando as Escolas, as Universidades e os Centros de Investigação, a Administração Pública e as empresas com um programa especial de apoio às PME. Precisa de um projecto para o sistema de saúde incluindo os equipamentos e recursos do SNS mas também o apoio às empresas que se reinventaram nesta crise e produzem equipamentos que podem capitalizar à escala global. Precisa de um projecto para a agricultura para apoiar as empresas, consolidar a economia e as redes logísticas locais e melhorar a nossa balança alimentar. Precisa de um grande projecto para a floresta e para o interior, baseado na construção de uma rede de centrais de biomassa, capaz de valorizar os lixos florestais, promover a limpeza da floresta, produzir bioenergia, criar emprego e aumentar a coesão territorial. Precisa de um projecto de reconversão industrial para explorar a capacidade de reinvenção das cadeias logísticas e apoiar as empresas nacionais de múltiplos sectores. Precisa de um projecto de reindustrialização explorando o potencial dos recursos minerais e energéticos nacionais como o lítio, o cobalto, o níquel, o nióbio, o tântalo, as terras raras, as energias renováveis como a solar, o gás e o hidrogénio. Precisa de um projecto para as Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, transformando-as em macrorregiões inteligentes e competitivas à escala global investindo na integração dos sensores, dados e tecnologias digitais e mobilizando todo o ecossistema de inovação com as empresas, centros de investigação, universidades e autarquias.

Não voltemos à ladainha de que o país não tem recursos. Tem recursos e deve desenhar políticas públicas capazes de os produzir, criar valor, gerar riqueza e emprego e construir um futuro diferente.

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