Tenho um filho, chama-se João, tem nove anos, está no 4.º ano e está a terminar o último ano do ensino primário fechado em casa.
Desde os três anos que o João está na mesma escola, no mesmo espaço físico, com os mesmos colegas, onde estão também os seus melhores amigos. E desde o 1.º ano que tem a mesma professora, a Leonor, que ele adora. Gostava muito de ter tido o ensino primário que o João teve, de gostar tanto da sua escola como ele gosta, de adorar tanto a sua professora como ele adora.
Este seu último ano do ensino primário era especial, chegava ao fim um ciclo da sua vida. Depois de sete anos no mesmo sítio, com os mesmos meninos, o João arrisca-se a terminar o seu último ano de escola primária sozinho, sentado na cadeira da secretária do seu quarto.
Na escola do João, este final de 4.º ano era especial e estava há muito a ser preparado, ia haver um espectáculo, com teatro, com coro, ia haver uma grande festa.
Com tudo isto que nos aconteceu a todos, o João já não pergunta pela sua festa de final de ano, pergunta: “Eu nunca mais vou estar na minha escola?”, “eu nunca mais vou ver os meus amigos?”, “eu nunca mais vou ver a Leonor?”. Às vezes faz estas perguntas a chorar, outras vezes não. Repare no uso que o João faz do verbo “ver”. O João sabe que continua a “ver” a Leonor e os seus amigos todos os dias, no seu caso por Zoom, mas para ele isso não é verdadeiramente “ver”.
A sua escola, os seus amigos, a sua professora ficaram reduzidos a seres bidimensionais, que se movem e falam dentro de pequenos rectângulos. Nesta escola aos quadradinhos não se brinca, não há “recreio”, nesta escola ele é espectador. Ele assiste à sua escola, mas não está dentro dela.
O João é, apesar de tudo, privilegiado; há meninos que nem os professores e os colegas têm oportunidade de continuar a ver, estando reduzidos às aulas televisivas. Não retiro méritos às tecnologias que nos ajudaram a minimizar a distância forçada, a amenizar um corte tão abrupto com a nossa vida normal, recriando uma espécie de continuidade. O João está a conseguir, apesar de tudo, aprender algumas coisas novas, ganhar novas competências. Mas recuso-me a dizer que o João e todos os meninos como ele estão “nas aulas”, que estão “na escola”. Não, eles estão fechados em casa a olhar para um ecrã.
Com todas as limitações do ensino à distância, a parte curricular está a conseguir ser, tanto quanto é possível, acautelada. Nesta fase em que o João está, o que a mim mais me preocupa não é a parte das aprendizagens que, se for necessário, pode ser compensada no próximo ano lectivo; o que me inquieta é a parte emocional e essa pode ser irrecuperável.
Alimentámos até ao fim a esperança de que iria haver pelo menos um mês de aulas do 1.º ciclo. Mas o Governo decidiu reiniciar, ao que tudo indica, a 1 de Junho o pré-escolar e não o 1.º ciclo. Não existe evidência científica que fundamente o tratamento diferenciado, apenas com base em razões de saúde, de grupos etários tão próximos. É uma decisão política que se prenderá também com questões logísticas. Nos vários países europeus, Portugal é dos poucos que decidiram não retomar as aulas presenciais antes do final do ano lectivo neste nível de ensino, apesar de existirem dados que parecem indicar que as crianças destas idades terão uma baixa taxa de transmissibilidade, que “o vírus para se ligar à célula respiratória tem de ter um receptor” e que as crianças têm “esses receptores em menor número do que os adultos”, explicou Maria João Brito, pediatra infecciologista do Hospital Dona Estefânia. Ou então um estudo realizado na Holanda, que envolveu um total de 54 famílias e 239 participantes, que concluiu que “as crianças desempenham um papel pequeno na propagação do novo coronavírus” e que este “é maioritariamente espalhado entre adultos”. Sabe-se também que, por norma, as crianças têm sintomas mais leves do que os adultos.
O que peço é que, pelo menos nos casos de fim de ciclo, em que a mudança de escola é inevitável, estes meninos tenham, durante o mês de Junho, um tempo na escola para fazerem as suas despedidas. O que peço é que haja algum tipo de retomar de actividade escolar, mesmo que não seja meramente lectiva, para que os meninos se possam reencontrar, para depois se despedirem. Nem que seja em formato de Actividades de Tempos Livres, que se prevê que abram a 1 de Junho, com todas as cautelas que a Direcção-Geral da Saúde julgue relevantes: com mais actividades ao ar livre, por turnos, se for necessário, com máscaras, desinfectantes, o que seja, mas deixem-nos regressar para que possam dizer adeus a esta parte da vida, que é também o final de uma fase da infância. Só assim poderão transitar com alguma serenidade para a fase seguinte.
Sem algum tipo de ritual de passagem temo que fiquem mágoas e tristezas que tornem a transição para o 5.º ano, para uma nova escola, para um novo mundo, com muitos professores − que já era encarado com algum receio, como tudo o que é desconhecido –, mais difícil. E que fiquem cicatrizes. Porque não é como “na matéria” – com as emoções não se volta atrás. Nunca é de mais repetir que a Organização Mundial da Saúde define a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”.
Pensou-se na importância de retomar, em parte, o 11.º e 12.º anos, porque esses são jovens que vão fazer exames nacionais de acesso à universidade também estão a chegar ao fim de ciclo. Pensou-se na parte funcional. É também de transição de ciclo que estou a falar no caso de crianças como o João.
A saúde emocional do meu filho é um bem essencial. Ele poder voltar à escola, com as cautelas necessárias, nesta fase especial da sua vida é mais importante do que eu poder voltar a cortar o cabelo, ir a um restaurante, ir à praia ou ir de férias. Senhor primeiro-ministro, eu este ano até dispenso ir à praia e ir “para fora cá dentro”, prefiro que deixe o João despedir-se dos seus amigos e da sua professora Leonor.