Narenda Modi e António Costa: um tango perigoso em tempos de covid-19
É desconcertante que esta aproximação com Portugal esteja a acontecer quando direitos democráticos estão a ser cada vez mais suprimidos na Índia e a sua imagem como democracia liberal tem vindo a ficar comprometida.
Fiquei incrédulo perante o tweet do primeiro-ministro, António Costa, publicado a 5 de maio: “Tive hoje uma excelente conversa telefónica com Narendra Modi a quem felicitei pelos bons resultados alcançados na contenção da pandemia num país tão grande e populoso como a #Índia.”
Ao contrário do que sugere este tweet, Narendra Modi, em vez de conter efetivamente a pandemia e minimizar o desconforto dos cidadãos, escolheu com as suas decisões ignorar a provisão de serviços essenciais, reforçar o nacionalismo Hindu num país multicultural e afirmar o poder bruto do Estado. Em suma, estragou a resposta Indiana à pandemia causando muitas mortes evitáveis.
Veja-se que, logo que o governo Indiano se apercebeu que estávamos perante uma pandemia, no dia 22 de março, a resposta de Modi foi declarar um recolher obrigatório de catorze horas – das sete da manhã às nove da noite – em todo o país (Janata curfew). O curfew foi um grande sucesso, pelo menos nas zonas urbanas em que criou uma paralisação total do país. No entanto, às 17 horas do mesmo dia em que foi implementado, testemunhou-se o pandemónio completo quando cidadãos indianos saíram das suas casas formando procissões, batendo palmas, utensílios de cozinha e tocando sinos – supostamente como forma da agradecer aos funcionários públicos que prestam serviços essenciais.
Ações, talvez não coincidentemente, muito parecidas com os rituais que segundo as crenças Hindus expulsam demónios. Resultado da forma como Narendra Modi abordou o país, escolhendo apelar a sentimentos nacionalistas e religiosos ao invés de explicar a lógica do confinamento no combate ao vírus. As primeiras medidas de confinamento resultaram, então, em eventos que paradoxalmente poderão ter ajudado à propagação do vírus.
Quando o governo apresentou as segundas medidas de confinamento, estas foram – ao contrário da chamada anterior para o Janata curfew, em que foi fornecido um período de aviso prévio de três dias – implementadas quase imediatamente, passadas horas. O resultado foi previsível: o pânico nos mercados, esvaziamento de lojas e, mais importante, a perda quase imediata de emprego para um grande número de trabalhadores precários para quem quase nenhuma provisão foi feita. A muitos destes trabalhadores foram negados não só os seus salários mas também os seus salários em atraso. Os transportes públicos foram suspensos e, como consequência, foi impossível a muitas dessas pessoas regressar às suas aldeias, onde teriam melhor acesso a recursos para sobreviver ao período de confinamento (inicialmente de 21 dias, mais tarde estendido para mais 19 dias, e subsequentemente até dia 17 de maio).
Já com nenhuma outra opção além de fazer viagens de centenas de quilómetros ao sol escaldante do verão Indiano, de bicicleta, ou ainda pior, a pé, estes cidadãos marginalizados foram vítimas da violência das forças policiais que estavam a fazer cumprir o confinamento. Forçados a evitar as estradas, trabalhadores que tentaram utilizar as vias de caminho-de-ferro foram mortos, vítimas de outros acidentes, ou simplesmente morreram de desidratação ou fome. Alguns relatos estimam cerca de quatrocentas mortes como resultado da resposta inapropriada do governo Indiano à pandemia. Quando alguns cidadãos conseguiram chegar a casa em segurança, foram encharcados com lixívia e produtos químicos semelhantes – medidas de prevenção por parte das autoridades locais.
E como se esta insensibilidade em relação às classes mais vulneráveis da sociedade não fosse suficiente, promoveu-se a islamofobia pelo país inteiro, através de uma campanha sistemática que insinuava que os muçulmanos na Índia estavam deliberadamente a espalhar o vírus.
O diretor da principal instituição médica da Índia – o All India Institute of Medical Sciences –, em Nova Deli, já veio dizer que os casos de covid-19 estão a aumentar de forma alarmante no país, devido à má gestão da crise. No dia 10 de maio foram registados 67.000 casos, incluindo um pico de 4000 casos naquele dia.
Neste contexto abismal, é difícil compreender a iniciativa de António Costa de dar os parabéns ao seu homólogo indiano.
Portugal tem tentado abraçar a Índia já há algum tempo. Em geral, esta iniciativa é louvável, porque, apesar da retórica oficial, a anexação dos territórios Portugueses no subcontinente tem complicado a relação entre os dois países. Porém, é desconcertante que esta aproximação esteja a acontecer enquanto direitos democráticos estão a ser cada vez mais suprimidos na Índia e a sua imagem como uma democracia liberal tem vindo a ficar comprometida.
De facto, a visita do Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, à Índia em meados de fevereiro ocorreu no contexto dos ataques mais violentos da polícia em campus universitários no norte do país. Estes ataques aconteceram no contexto da Citizenship Amendment Act (Lei sobre a alteração da cidadania – CAA) aprovada pelo Parlamento Indiano no dia 12 de dezembro 2019. Uma lei que desrespeita os princípios constitucionais seculares da Índia ao tornar a religião um dos argumentos para oferecer asilo.
Todas estas questões podem não importar ao Estado Português, que procura assegurar os seus interesses comerciais e empresariais na economia indiana – alegadamente em crescimento. No entanto, seria importante que o primeiro-ministro de Portugal se abstivesse de deliberadamente deturpar factos sobre o Estado Indiano quando na mesma sequência de tweets indicou: “Decidimos unir esforços para que prevaleça a visão de um mundo mais seguro, assente na prosperidade partilhada e na defesa da democracia.”
Sugerir que a Índia contemporânea é segura para os seus grupos minoritários, ou defender a existência de uma democracia, é um grande murro no estômago de todas as comunidades indianas cujos membros se encontram literalmente ameaçados de morte atualmente. Mais grave ainda, relatórios não confirmados indicam que foi com base na intervenção de Portugal que uma resolução condenando a CAA não foi aprovada pelo Parlamento Europeu. A resolução sugeria que a CAA poderia desencadear “a maior crise de apatridas no mundo e causar sofrimento humano generalizado”. O interesse de Portugal parece demonstrado por um segmento do tweet de Costa, onde afirma: “Por isso concluímos que é mais importante do que nunca a realização da Cimeira #UE-#Índia durante a Presidência Portuguesa do Conselho da UE.” Uma atitude de sangue-frio com vista a negócios com a Índia, aproximando-se de uma atitude colonial de extração de recursos de um território onde os direitos estão cada vez mais ameaçados.
Os Portugueses deviam estar duplamente preocupados: a história claramente mostra que este tipo de “pragmatismo”, embora benéfico a curto prazo, tem efeitos devastadores na democracia e nas liberdades internas a médio e longo prazo. Os tweets do primeiro-ministro mostram uma enorme distorção em relação à natureza da relação com a Índia e a situação dos seus próprios cidadãos.
Talvez seja este “o mundo pós-#covid19” sobre o qual e Costa e Modi falaram na sua conversa.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico