“Dignidade humana” e “direito à vida”
Na Alemanha crescem as pressões para se retomar o mais rapida e plenamente possível a normalidade da atividade económica, e é nesse contexto que o direito à liberdade dos cidadãos é contraposto ao direito à vida.
A pandemia com que nos defrontamos tem posto à prova as instituições. Já não falo das que operam no plano internacional, como a OMS, que emite recomendações com base em avaliações periciais à escala global, mas sim daquelas que, em cada país, regem a vida coletiva. O debate jurídico-constitucional que tem ocorrido na Alemanha é bastante sintomático a este respeito, como paradigma das questões que se colocam num Estado de Direito. Por contraste, sobressaem, no extremo oposto, em vez da China “totalitária” – como seria de esperar na confrontação clássica que remonta à Guerra Fria –, os Estados Unidos, outrora considerados farol do “mundo livre” e hoje capturados por Trump.
A subtileza da confrontação de posições antagónicas, na Alemanha, está na articulação dos princípios constitucionais da “dignidade humana” e do “direito à vida”.
Crescem as pressões para se retomar o mais rapida e plenamente possível a normalidade da atividade económica, e é nesse contexto que o direito à liberdade dos cidadãos – como apanágio de uma “vida digna” – é contraposto ao “direito à vida”. “Inquieta-me como agora também juristas relativizam a proteção da vida” – declara o filósofo Jürgen Habermas em diálogo com o jurista Klaus Günther, referindo-se às medidas de alívio do desconfinamento, respaldadas pelo próprio Conselho Ético alemão ao reconhecer que “a proteção legal da vida humana não é válida em absoluto” e que “há um risco geral de vida que cabe a todos aceitar”.
O que preocupa Habermas é o facto de esta linha de argumentação colocar o “direito à dignidade humana”, consagrado no art.º 1.º da Constituição alemã, acima de todos os outros direitos fundamentais, a começar pelo direito à vida: “Terá o Estado o direito de sopesar a sobrevivência de alguns cidadãos ou ainda de um único deles em contraposição ao bem-estar, ou, digamos, à vida mais ou menos boa de grandes grupos sociais?” Não se trata aqui da autonomia do paciente que, numa situação extrema, prefere a morte por não poder continuar a levar o que ele próprio considera ser uma vida “digna”. Trata-se de ser o Estado a decidir, pelo cidadão, em que consiste uma vida “digna”.
Naturalmente – como Günther observa e parece ser consenso entre os juristas –, “a necessidade de ponderar direitos fundamentais resulta do facto de haver mais do que um direito fundamental e nenhum deles ser ilimitado”, podendo colidir uns com os outros. É preciso, ora “impedir previsíveis colisões”, ora ter em vista “outros objetivos legitimados constitucionalmente”, o que explica as limitações de direitos fundamentais expressamente previstas na lei. Em última instância, quando estão em causa direitos fundamentais conflituantes (como, neste caso, os respeitantes à vida e à liberdade) rege o princípio da “proporcionalidade”. O problema é que, nas condições concretas da atual pandemia, se torna particularmente difícil o consenso sobre onde traçar a fronteira entre casos mortais “evitáveis” e “inevitáveis” em função de limitações da liberdade “elevadas e de consequências imprevisíveis”.
Assim, “aqueles que, em nome das liberdades fundamentais, defendem ainda maior alívio das restrições, fundando-se na relatividade do direito fundamental à vida, deveriam dizer então, não só até quanto poderia subir o número dos casos mortais previsíveis sem levar ad absurdum o direito à vida”, mas também “explicar ao primeiro paciente que já não puder respirar em consequência do alívio das restrições que ele tem de morrer por causa da liberdade dos outros”. No mesmo sentido vai a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, segundo a qual o direito à vida “é a base vital da dignidade humana e o pressuposto de todos os outros direitos fundamentais” – incluindo o direito à liberdade. Note-se, de passagem, uma “ironia”: alguns que hoje relativizam o direito à vida face à dignidade humana são os mesmos que outrora, em nome do “direito à vida”, defendiam a derrogação do direito da mulher à interrupção voluntária da gravidez nas primeiras doze semanas… (semanário Die Zeit, 8/05/2020, pp. 41-42).
Tudo isto, porém, é demasiado complexo para a Administração Trump. Incapaz de gerir o caos que ela própria, aliás, promove, refugia-se em bodes expiatórios. Não reconhece erros, enjeita responsabilidades, ignora a Constituição, mas, acima de tudo, deixa transparecer, a cada passo, os estigmas discriminatórios que chancelam a sua governação. A ostensiva falta de empatia com os que sofrem e fenecem – só rivalizada por Bolsonaro, um perfil ainda mais boçal de pequeno ditador – é o reverso do enorme desprezo pela vida do “outro”: do “outro inferior”. Assume-se enfaticamente, sem pejo, nem inquietações ético-jurídicas, que a proteção do “direito à vida” não é igual para todos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico