Um Esboço de resistência ao Estado Novo
Passados 50 anos (a carta de proibição do Esboço data de 18 de maio de 1970) é tempo para assinalar esta data. Talvez este episódio não tenha a magnitude de outros gestos antifascistas e que por isso tenha tendência a ser ignorado.
1970. Quem se lembra? Eu sei… só mesmo quem hoje se reivindica ser “sexagenário”.
Deixem-me, a mim que sou sexagenário, contar uma breve história.
A história começa numa Igreja pouco conhecida: a Igreja Lusitana. Em 1970 a Igreja Lusitana, herdeira das igrejas nacionais (como p. ex. a Igreja Anglicana) mantinha uma posição não muito bem vista pelo regime (dirigido por Salazar e a partir de 1968 por Marcelo Caetano) de abertura e de apego a valores que eram adversos à hierarquia da Igreja Católica, na altura dominante.
Os valores do Concílio Vaticano II (1962-65) arrojadamente convocado pelo Papa João XXIII, demoravam a chegar a Portugal. A Igreja Lusitana representava neste tempo uma clara posição de progresso por realizar os cultos em português (“na língua que o povo entenda”), rejeitando o celibato dos presbíteros e promovendo uma postura de debate e de esclarecimento tanto ao nível teológico como sociopolítico.
Em 1970, a Igreja Lusitana constituía um espaço de debate de liberdade raro e que questionava não só o posicionamento teológico dominante, mas também o posicionamento político da Igreja face ao regime. A Igreja Lusitana era então dirigida pelo Bispo Luís Pereira, uma personalidade ímpar de uma enorme clarividência e coragem, natural de Vila Franca de Xira onde durante dezenas anos desenvolveu a sua humanitária função de “médico dos pobres”.
Na Igreja Lusitana do Torne em Vila Nova de Gaia, um grupo de jovens com menos de 20 anos dá os seus primeiros passos para sacudir o peso do Estado Novo. Organizados a partir do Salão Paroquial, convertem este lugar num espaço de encontro, de discussão e de fruição cultural. É aí que se representam peças de teatro, se organizam colóquios, prática desportiva, música, organização de uma biblioteca, exposições de fotografia e de pintura e se convidam múltiplas personalidades para debates não só de índole religiosa, mas também de natureza social e política. Rapidamente esta atividade extravasa os muros da Igreja Lusitana e os “Jovens do Torne” como começaram a ser conhecidos, assumem um protagonismo fora do âmbito da Igreja.
Em 1969 começam a editar um jornal chamado Esboço. Esta publicação dirigida por Joaquim Armindo e com a colaboração de J. Gonçalves Guimarães e muitos outros jovens que, através de artigos de opinião, notícias, poesia e arte transmitiam a esperança de Paz, de Liberdade e de compromisso com novos mundos. O Esboço era policopiado, laboriosamente datilografado e reproduzido em stencil.
O Esboço foi sendo o testemunho de vontade de mudança deste grupo dos “Jovens do Torne”. Não tardou muito que se tornasse notório para a censura. É de lembrar que em 1970 todas as publicações eram censuradas, com o eufemismo de “exame prévio”, e só poderiam ser publicadas com autorização prévia da censura. Ora o número 3 foi então proibido. O diretor, Joaquim Armindo, recebeu uma carta em que, evocando as razões do costume, proibia a publicação e a circulação do Esboço.
O jornal não voltou a sair, mas, mesmo assim, a retaliação do regime não deixou de se fez sentir tendo sido o diretor e outros colaboradores mandados compulsivamente combater na Guerra Colonial.
Passados 50 anos (a carta de proibição do Esboço data de 18 de maio de 1970) é tempo para assinalar esta data. Talvez este episódio não tenha a magnitude de outros gestos antifascistas e que por isso tenha tendência a ser ignorado. Pensamos que não o deve ser e que, através desta memória, podemos entender várias lições. Realçaria três delas:
Antes de mais o caráter pioneiro deste movimento dos “Jovens do Torne”. Num tempo em que a oposição ao regime era perigosa e clandestina, um grupo de jovens opta por “dar uma pedrada no charco” praticamente sem apoios e só com a profunda convicção que era essencial assumir uma posição política, religiosa e cultural sobre o que se passava em Portugal.
A proibição do jornal Esboço e as réplicas repressivas que se lhe seguiram, são bem elucidativas da mesquinhez e temor com que o regime controlava uma sociedade amordaçada, forçada ao isolamento, exangue pela Guerra Colonial e aterrorizada pela polícia política.
Por fim, o facto de este acontecimento ser “um entre muitos” não lhe deve diminuir o alcance. Os últimos anos do Estado Novo estão repletos de atitudes de “pequena” resistência em toda a vida social, política e cultural. Não se entenda, no entanto, que a ditadura fosse mais branda ou relapsa com estas “pequenas” resistências: amparada por uma extensa rede de informadores e por uma omnipresente polícia política, procurava de todas as formas possíveis fazer pagar com interrogatórios, inibições e prisões a audácia de todos os (muitos) que se atreviam a contestar a ordem estabelecida.
Celebramos, pois, os 50 anos da proibição do jornal Esboço. Nele se escrevia e desenhava já o esboço do regime que, implantado quatro anos mais tarde, devolveria a dignidade ao povo português.
Todos os que desenhamos este Esboço, não esquecemos os valores que entesouramos desta experiência. De todos estes valores, o mais alto, o mais nobre e também mais precioso é, sem dúvida, a Liberdade.
David Rodrigues.