Valentina, a protecção das crianças e os bodes expiatórios
Em que medida falhámos todos, enquanto sociedade? Será que sinalizámos todas as situações de risco de que suspeitámos? Qual o investimento que temos feito em termos de prevenção dos maus tratos e em sensibilização da comunidade? E em formação técnica e capacitação das equipas que avaliam e trabalham com as famílias?
O país está mergulhado em choque e indignação com a morte da pequena Valentina, alegadamente cometida pelo pai e pela madrasta, em circunstâncias ainda por apurar. Uma reacção emocional expectável, atendendo a que teimamos ainda em acreditar que a família é o lugar mais seguro para uma criança. Não é, nunca foi, e duvido que alguma vez venha a ser. Na esmagadora maioria das situações, é na família que ocorrem os maus tratos, a negligência e o abuso sexual de crianças e jovens. O indivíduo estranho feio, porco e mau que aparece do nada, rapta, maltrata e viola as crianças é mais um mito do que uma realidade.
Esta morte trágica de uma criança às mãos de um dos pais tem de obrigar-nos a repensar a forma como funcionamos enquanto sociedade. Tem de obrigar-nos a olhar para as fragilidades do nosso sistema de promoção e protecção de crianças e jovens, fragilidades essas que são, afinal de contas, as fragilidades de todos nós. Porque o sistema somos todos nós.
Assim que a situação da criança foi anunciada, logo choveram críticas destrutivas dirigidas à CPCJ que teria tido uma sinalização da criança há cerca de um ano, acabando por arquivar o processo algum tempo depois.
O nosso sistema de protecção está organizado de uma forma piramidal, o que significa que na base temos as chamadas entidades com competência de intervenção em matéria de infância e juventude. São serviços de primeira linha como a escola, os serviços de saúde, as instituições particulares de solidariedade social, a polícia, entre outros. Serviços de proximidade que, como o nome indica, estão mais próximos das crianças e das famílias e a quem compete um olhar atento para a eventual identificação de situações de risco. A meio da pirâmide temos então as CPCJ, a quem compete avaliar as situações de perigo que são sinalizadas. Avaliação esta que exige um contacto com a família e a criança, a sua rede formal e informal (amigos, vizinhos, etc.). O que significa que esta avaliação irá também socorrer-se das informações da primeira linha. Caso a avaliação efectuada permita concluir sobre a existência de uma possível situação de perigo, o processo é aberto e segue o seu curso, podendo, ou não, vir a transitar para tribunal (situado no topo da pirâmide).
Ora, quando um caso é arquivado, significa que, à data em que decorreu essa avaliação, não foram identificados sinais indicadores de uma situação de perigo, sendo certo que, como sabemos, os técnicos não possuem poderes adivinhatórios e têm de trabalhar com os dados que têm disponíveis. Ou seja, não significa que, um ano volvido, essa mesma família não possa apresentar uma dinâmica diferente, eventualmente disfuncional. A família é um sistema dinâmico, convém recordar e sublinhar.
Mais, importa ainda destacar que durante este último ano não terá ocorrido qualquer tipo de sinalização em relação a esta criança. Ou seja, nem a família, os vizinhos, a escola ou as demais entidades da primeira linha identificaram qualquer sinal de risco que justificasse um pedido de ajuda.
É verdade que os diversos serviços que intervêm na área da protecção de crianças e jovens apresentam uma escassez de recursos humanos. Temos de ser honestos e admitir isto. Quantos psicólogos e assistentes sociais existem nos agrupamentos escolares e nos cuidados de saúde primários? São suficientes? E qual o ratio de processos por técnico em cada CPCJ? E são os peritos forenses suficientes para realizar as respectivas perícias? E os tribunais, possuem todos eles equipas multidisciplinares devidamente capazes de dar resposta atempada e rigorosa aos pedidos de avaliação e intervenção?
A resposta a todas estas perguntas é “não”.
Mas, ao invés de corrermos a apontar os dedos, tentando identificar bodes expiatórios, talvez fosse boa ideia repensar o papel que cada um de nós representa neste sistema. Em que medida falhámos todos, enquanto sociedade? Será que sinalizámos todas as situações de risco das quais suspeitámos? Qual o investimento que temos feito em termos de prevenção dos maus tratos e em sensibilização da comunidade? E em formação técnica e capacitação das equipas que avaliam e trabalham com as famílias?
Repensemos o sistema de uma forma construtiva e geradora de mudanças, para que todas as crianças possam ver efectivamente salvaguardados os seus direitos. Não vamos a tempo de proteger a Valentina, é certo, mas podemos ainda proteger tantas outras Valentinas.