Não tenhamos ilusões quanto ao capitalismo verde: precisamos de uma visão de decrescimento
Parece que não há coragem para pensar ou liderar a necessária luta ecológica pela transição da sociedade. Será que uma análise verdadeiramente ecológica, sóbria, corajosa e profunda do problema “não vende”?
O ambientalismo caduco ainda perdura em Portugal. No apogeu do presente momento histórico, o melhor que sonantes nomes e organizações conseguem propor no “Manifesto por uma Recuperação Económica Justa e Sustentável em Portugal” acaba por não ser mais do aquilo que já foi dito pela Comissão Europeia e que corresponde ao chamado “capitalismo verde”. Esta visão de “sustentabilidade” está refém das contradições profundas do Pacto Ecológico Europeu, da insustentabilidade da “transição energética”, da ineficácia repetitiva das COP, e da hipocrisia da promessa de neutralidade carbónica. Se queremos ser realistas, teremos que aceitar que é impossível continuarmos a ter crescimento económico, e que a solução terá de ser encontrada fora dele.
Mas parece que não há coragem para pensar ou liderar a necessária luta ecológica pela transição da sociedade. Será que uma análise verdadeiramente ecológica, sóbria, corajosa e profunda do problema – e das mudanças radicais a que vai obrigar – “não vende”? Será por isso que se tenta evitar a todo o custo “sentimentos de perda e pânico”, em vez de avançarem abordagens e soluções que nos permitam viver esses sentimentos de forma saudável, enfrentá-los coletivamente e lidar com eles da melhor maneira que encontremos, junt@s.
A situação atual é assustadora. É urgentemente necessário ter a coragem e a humildade de questionar posicionamentos que se defenderam durante vidas inteira, em torno dos quais se construíram identidades e carreiras. É preciso ter a coragem de aceitar que não devíamos, nem “relançar a economia”, nem andar como loucos à procura de soluções tecnológicas que resolveriam magicamente os nossos problemas.
Parece que se acabaram as ideias arrojadas e inovadoras, as narrativas alternativas capazes de galvanizar pessoas e a sociedade. O ambientalismo de hoje (em Portugal, mas não só) parece apenas conseguir dizer umas palavras bonitas e inócuas sobre solidariedade e sustentabilidade, sem ser capaz de avançar corajosamente em direção ao futuro. Repete indefinidamente a narrativa de um capitalismo tão “climático” como incongruente, repetidamente resgatado aos trilhões por planos de crescimento verde, agora geridos por fundos de investimentos que tanto têm a ganhar em manter o sistema como está: acelerado e destrutivo – mas altamente lucrativo para uma elite cada vez pequena. Queremos mesmo salvar este sistema e trazê-lo de volta ao “normal”, relançar a economia, apostar no crescimento verde, manter tudo como estava – mas agora “melhor”?
A ilusão verde
Talvez gostássemos, egoistamente, que fosse possível voltar ao antigo “normal”, mas agora “verde”. Vivemos nesta sociedade, fazemos parte desta cultura, estamos no lado privilegiado do planeta. Gostávamos que fosse realmente possível criar este admirável novo mundo verde que se preconiza. Mas isto não é possível. Não só a energia dita “verde” depende totalmente de uma economia e de uma indústria baseadas em combustíveis fósseis e de extração. O objetivo desta economia não deixa de ser a manutenção de um sistema extrativista, apostando em lógicas de crescimento infinito, com impactos ambientais muito para além da emissão de CO2. Mesmo se avançássemos a fundo no sentido dessa “transição verde”, a destruição ambiental resultante de construir toda a infra-estrutura de renováveis (milhares e milhares de eólicas e painéis solares, centrais de biomassa, cabos, robots e outras máquinas, etc.), as baterias (necessárias para armazenar toda a eletricidade gerada), e toda uma nova frota (agora positivamente elétrica) de carros, camiões, aviões, barcos, máquinas agrícolas, maquinaria pesada para a extração de minérios (muitos deles raros) resultaria num crime ecológico imensurável. Seria mais um passo irreversível em direção ao desequilíbrio total do sistema, para não falar da continuação de violências indizíveis sobre povos inteiros e classes economicamente desfavorecidas, no nosso país ou longe dele.
A dependência suicida do crescimento económico
Ser contra ESTA transição energética não é ser contra uma transição energética nem contra uma – muito necessária – transição societal. Ser contra a massificação das energias verdes e do crescimento económico que pretendem sustentar, não é negacionismo climático, nem é querer “voltar à idade da pedra”. Ser contra a narrativa “feel-good” e do “fácil de digerir” do mainstream ecológico em Portugal não é “contra-produtivo” para os esforços da transição. Ao contrário, é saber observar, sentir, analisar e relacionar informação que deixa clara a muita falta de coragem que continua a existir, e que impede a busca de verdadeiras soluções.
A única coisa que vai acontecer, ao tentar aguentar artificialmente um sistema que não pode nem deve estar de pé, é fazer ruir dos pilares que o sustentam. Já vemos os direitos humanos esquecidos nos tiros aos refugiados nos mares gregos, os fascismos emergentes, as desigualdades crescentes, atropelos à ecologia – quando entendida como equilíbrio de biodiversidade num planeta finito – e as vozes de um movimento ecologista cada vez menos pertinente. Manter este mesmo sistema económico, mas agora movido a motores elétricos ou de hidrogénio, significaria continuar a pescar 90% dos oceanos, perpetuar a agricultura industrial atual, continuar a fazer desaparecer milhões de espécies e florestas inteiras, etc.
Entender onde estamos
A economia nacional não precisa – como afirma o tal manifesto e todos os players políticos – “ser relançada”. Não pode ser relançada porque não podemos continuar a crescer economicamente, e é isso que “relançar da economia” quer dizer. Um modo de vida baseado em gigantescas cadeias de produção, transporte global constante e cada vez mais veloz, dependente de petróleo para tudo – inclusive para produzir comida – e apoiado na exploração constante de pessoas e da Natureza é obviamente insustentável. E “insustentável” significa: a dada altura não se consegue aguentar, deixa haver sustento. O que precisamos é de uma economia radicalmente transformada. E para que isso possa acontecer, vai ser necessária muita coragem, muita imaginação coletiva, muita experimentação, e muita adaptação a realidades locais. A nova organização económica terá de gerir o decrescimento sustentado do PIB e focar-se na transição, na capacitação de comunidades, e na construção de resiliência, para assim aumentar a capacidade de fazer face aos choques sistémicos que já sentimos e que aí vêm, cada vez mais.
Portugal devia começar imediatamente o (moroso) processo de transição que já deveria estar em curso. Temos pouco, muito pouco tempo. Precisamos de comunidades empoderadas, economias locais e de circuitos curtos, com descentralização política, muita experimentação social, capacitação humana, novos padrões de produção e de consumo, (re)construindo infraestruturas públicas resilientes e inovadoras, criando empregos decentes, valorizando os recursos locais e contribuindo para um território habitado inclusivo, seguro, resiliente e verdadeiramente sustentável. E estas são apenas algumas sugestões, onde há TANTO para sonhar, inventar e fazer!
Mas primeiro é preciso ter coragem e aceitar a realidade. Não precisamos de mais ilusões: precisamos de coragem, sobriedade e vontade de construir algo novo. Precisamos imaginação, de uma nova abordagem ecológica, e de começar AGORA! Temos de nos preparar em conjunto para o novo mundo que nos alcança.
Nota: Apesar de os autores serem membros da Rede para o Decrescimento em Portugal, o texto não reflete necessariamente a posição da Rede
Guilherme Serôdio, Activista e co-fundador do Extinction Rebellion na Bélgica; Hans Eickhoff, Médico
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico