Aprender a cozinhar: da obrigação ao prazer!

Mais do que maravilhas da gastronomia, importa que em cada casa, a cada refeição, esteja a ser preparada uma “maravilha alimentar”, com a envolvência de miúdos e graúdos.

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Desde pequenos, os mais novos podem ajudar e aprender a comer melhor Kelly Sikkema/Unsplash

Após a Segunda Guerra Mundial, muitas foram as transformações no consumo alimentar e hábitos culturais dos indivíduos que contribuíram para o desenvolvimento de doenças crónicas; o surgimento daquela que tem vindo a ser chamada como a “Terceira Guerra”, sem recurso a armamento militar, a pandemia do SARS-CoV-2, poderá trazer-nos uma nova oportunidade para reverter esta tendência.

Durante o período de confinamento social imposto pelas autoridades, observamos mudanças drásticas ao nível dos padrões de poluição a que vínhamos a assistir, com reduções significativas que se traduziram no regresso de maravilhas paisagísticas e ecológicas no nosso Planeta.

Também as nossas casas, que se viram povoadas 24 horas por dia, foram alvo de mudanças nas suas paisagens, rotinas, sendo a preparação das refeições e o seu consumo uma oportunidade por excelência para a promoção da literacia alimentar e nutricional. Mais do que maravilhas da gastronomia, importa que em cada casa, a cada refeição, esteja a ser preparada uma “maravilha alimentar”, com a envolvência de miúdos e graúdos, onde se ensina a importância dos alimentos e a sua origem, onde se contam histórias e estórias da mãe, da avó ou da bisavó. A Dieta Mediterrânica, património imaterial da humanidade, reconhece igualmente, como característica fundamental deste padrão alimentar, as práticas culinárias e a sua transmissão às gerações futuras.

As competências culinárias podem ser definidas como um conjunto de conhecimentos, atitudes, capacidades e aptidões que habilitam o indivíduo no seu papel de cozinhar alimentos ao longo da vida. Como tal, importa consciencializar para a importância das competências culinárias para um comportamento alimentar adequado, e realçar a oportunidade desta situação atípica (cada vez mais designada como “novo normal”) para a promoção destas competências nas gerações vindouras.

Todos os membros do agregado familiar devem participar nas tarefas associadas à preparação das refeições, desde o planeamento às compras e à sua execução. As crianças mais pequenas (3 a 5 anos) podem ajudar a trazer da despensa ingredientes, misturá-los, iniciar a aprendizagem sobre a separação do lixo, assim como pôr a mesa. A partir dos 6 anos já podem colaborar na lavagem e corte de hortícolas, começar a usar alguns utensílios de cozinha, como a batedeira e ainda pesar e medir alimentos e ingredientes, permitindo a aplicação de conhecimentos adquiridos na escola. A partir dos 9/10 podem seguir receitas simples, libertando os pais desta tarefa. Deixe-se surpreender pelo que eles podem e conseguem fazer. É também nestas idades que devemos ensiná-los a ler rótulos, procurando desenvolver uma atitude mais crítica sobre a alimentação — aplicando, inclusive, conceitos de matemática, português e estudo do meio ao consumo alimentar.

Uma actividade em família pode passar por sentarem-se à volta da mesa a planear a ementa para a semana seguinte. Este planeamento deve ter em conta o que está disponível em casa (na despensa, no congelador, no frigorífico) e incluir os alimentos base, característicos da Dieta Mediterrânica. Privilegie os hortícolas e frutas, aproveite que está em casa para experimentar legumes diferentes, pesquise receitas com beringela, couve-lombarda, aipo, funcho, brócolos, courgette, entre muitos outros. Acompanhe estes produtos com cereais, de preferência não refinados (pão, massas, arroz, milho) e quantidades moderadas de pescado, aproveitando também para experimentar os menos usuais, como a cavala. O consumo de pescado é muito importante para as crianças, em particular durante a idade escolar, contribuindo para um melhor desempenho intelectual. Dê ainda uma nova oportunidade às leguminosas (grão, feijão, favas, lentilhas), recuperando antigas receitas familiares. E utilize sempre azeite para confeccionar as suas refeições, dando preferência ao virgem e virgem extra.

Nunca a expressão que tantas vezes ouvimos aos nossos avós “No meu tempo é que era bom!” fez tanto sentido. E neste momento, em que (re)descobrimos o sabor doce da sua presença, fruto do distanciamento físico imposto, importa reabilitar as características do seu padrão alimentar. No passado a alimentação era simples, caracterizada pelo consumo de hidratos de carbono complexos, provenientes de alimentos com alto teor de fibra e baixo índice glicémico. As maiorias das preparações culinárias eram cozidas, estufadas ou assadas e preservavam a qualidade nutricional. Os hortícolas eram consumidos abundantemente e provenientes da horta lá de casa, em cujo cultivo era utilizada a compostagem e não eram utilizados pesticidas. Quando tal não era possível, o consumo dos mesmos era garantido por trocas directas e de proximidade. As carnes e aves eram criadas nas próprias casas, aguardando o tempo de crescimento e maturação normal do animal, e utilizando todos os seus subprodutos. Neste ponto, gostaríamos de realçar o importante papel dos ovos na alimentação — fonte proteica de excelência, bem como de outros nutrientes, e que têm um baixo custo comparativamente à carne e pescado, pelo que importa reabilitar o seu consumo. Os temperos utilizados eram elaborados pela avó, à base de ervas sempre frescas, marinadas que se faziam sem pressa e as frutas colhidas e consumidas diariamente.

Os condicionalismos do momento actual que vivemos, que nos obrigaram a refazer todas as rotinas e nos deixam tempo para pensar nas opções que fomos fazendo, fruto da agitação da vida moderna, podem criar uma oportunidade para mudarmos o que achámos ser imutável, e recriar hábitos e práticas culinárias dos nossos antepassados, recuperando o gosto pela cozinha e fazendo de todo o processo uma nova oportunidade de convívio, aprendizagem e partilha familiar.

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