Um dia a combater o coronavírus: profissionais de saúde partilham os momentos mais difíceis
Os enfermeiros e os médicos de um hospital em Maryland, nos Estados Unidos, relatam os momentos mais difíceis dos seus dias. Em tempos de pandemia, a covid-19 leva os profissionais de saúde a fazerem turnos de mais de 12 horas.
Os turnos são longos e os momentos desoladores dentro de um hospital em Maryland, nos Estados Unidos, onde enfermeiras e médicos tratam pacientes com covid-19 há semanas, impossibilitados de deixar as famílias entrarem para visitar os seus entes queridos às portas da morte. Depois de terminar o que para muitos foi um turno de mais de 12 horas, alguns enfermeiros e médicos de um hospital partilharam com a Reuters os momentos mais difíceis dos seus dias. O hospital pediu para não ser identificado.
Os profissionais de saúde concordam que uma das partes mais difíceis do trabalho — mais do que o horário exaustivo ou a adaptação ao trabalho numa nova unidade — é testemunhar o impacto nos doentes e nas famílias. Kimberly Bowers fez mais um turno de 13 horas e conta que o momento mais difícil do seu dia foi ver “uma jovem a morrer e a família não poder estar com ela”.
Nos últimos dias, um dos momentos mais difíceis para a enfermeira Julia Trainor foi entubar uma paciente “que já não conseguia respirar sozinha” e, depois, ligar para o marido para que pudesse falar com a esposa, já que a sua entrada no hospital não foi permitida. “Tive que lhe ligar e segurar o telemóvel junto ao ouvido da paciente, enquanto ele lhe dizia que a amava. Depois tive de lhe limpar as lágrimas”, conta Trainor, que trabalha numa unidade de cuidados intensivos (UCI) cirúrgicos. “Estou habituada a ver pacientes graves e a morrer, mas não há nada como isto.” Apesar de tudo, sente que o mais difícil para os pacientes é terem que enfrentar a doença com a “sensação de que estão sozinhos”.
A doença altamente infecciosa covid-19, causada pelo novo coronavírus, já infectou 1.111.062 pessoas nos Estados Unidos e matou quase 65.000. No estado de Maryland, onde os residentes receberam indicações para ficar em casa desde 30 de Março de forma conter a propagação da doença, 24.473 testaram positivo para o vírus e 1.156 morreram. A enfermeira Kaitlyn Martiniano explica que, apesar de terem muitos pacientes e muitos estarem gravemente doentes neste momento, ainda não foram tão fortemente atingidos como Nova Iorque ou Seattle porque “muitas coisas estão fechadas e muitas pessoas estão em casa.”
Uma vez que o hospital não permite visitantes, o pessoal médico deve cuidar das necessidades físicas dos pacientes e oferecer o máximo de apoio emocional possível na ausência das famílias. “O momento mais difícil do meu turno é ver os pacientes infectados com covid-19 a morrer desamparados e sozinhos, sem os que amam ao seu lado “, diz Ernest Capadngan, enfermeiro na unidade de contenção biológica do hospital. Lisa Mehring, por sua vez, conta que o pior é ver as mães infectadas com filhos recém-nascidos, impedidas de os alimentar e acarinhar.
Comunicar com as famílias das vítimas é um peso muito grande para os profissionais de saúde: não podem infringir as regras que proíbem as visitas, mesmo quando a família liga em desespero. “Hoje tive um paciente que caiu da cama e tive de ligar à esposa dele e dizer-lhe que não o podia visitar, apesar de ela ter implorado repetidamente para vir vê-lo”, diz Tracey Wilson, enfermeira.
"Um dos momentos mais difíceis foi ter de ver um familiar de um paciente com covid-19 a despedir-se através de um iPad”, diz Tiffany Fare, enfermeira da unidade de contenção biológica. “Foi difícil, não consigo imaginar o quão difícil deve ser despedirem-se. Não podes ver os teus entes queridos e depois eles desaparecem para sempre.” Fare tem 25 anos e acabou um turno de 13 horas. “A minha equipa tem sido muito boa. Não nos conhecíamos, viemos todos de unidades diferentes dentro do hospital e para nos unirmos e trabalharmos tão bem enquanto equipa foi uma jornada, mas acho que é isso que me está a dar esperança”, diz.
O médico especializado em emergências Kyle Fischer explica à Reuters a incerteza que vive todos os dias. “Como é um novo vírus, não temos qualquer experiência com ele. Estou habituado à maioria das doenças e sei como as tratar, mas isto, não tenho nenhum ponto de referência. Sei o que ouço de Nova Iorque, sinto que já li todos os jornais, mas ninguém sabe quais as respostas correctas, por isso há uma enorme incerteza e as pessoas estão muito, muito doentes. É fácil duvidar se estás ou não a fazer a coisa certa quando pensas que estás, porque nunca se sabe bem”, reflecte Fischer.
Jacqueline Hamil saiu de um turno de 12 horas em que esteve no comando do serviço de urgência. O momento mais difícil do seu turno foi ter uma paciente muito doente e, devido ao risco de contágio, ter que pôr apenas uma enfermeira a cuidar dela. “Acabou por estar na sala umas seis ou sete horas com pausas mínimas e foi difícil para mim estar no comando e saber que ela estava presa na sala e realmente não havia nada que eu pudesse fazer para a ajudar”, diz Hamil.
Há muito poucas oportunidades para descansar durante o turno, mesmo com os colegas a olharem uns pelos outros e a tentar revezarem-se quando alguém precisa de uma pausa. Cheryll Mack, uma enfermeira nas urgências, diz que tenta sair 15 minutos durante o dia para respirar. "A propagação da covid-19 afectou muito o sustento e a vida de muitas pessoas. Por isso gostaria de pedir não apenas a uma pessoa, mas a todas as pessoas em todo o mundo, que se juntem, porque isto é algo que ninguém pode combater individualmente”, continua Mack, com 46 anos e a fazer turnos de 12 horas.
Cada turno termina com um processo de descontaminação. Os enfermeiros e médicos devem retirar o equipamento de protecção individual e tomar banho o mais rapidamente possível, antes de entrarem em contacto com a família em casa. “Tomo um duche muito longo e com a água muito quente. Depois costumo sentar-me no sofá e ler um livro ou assistir a algum reality show despreocupado para tentar aliviar a tensão”, diz Martine Bell.
A enfermeira conta que “o mais difícil em tudo isto tem sido cuidar de outros profissionais de saúde”. “Atinge-te em cheio e é assustador quando vês alguém que poderias ser tu a dar entrada e agora estás a tomar conta dele.” Bell acrescenta, ainda, que é assustador pensar no que acontecerá quando os profissionais de saúde começarem a adoecer: “Quem vai cuidar do público?” “É muito stressante, estamos todos no limite. Não sabemos quem vem a seguir, ou quão doentes vão ficar, ou se vamos ter um monte de pessoas, ou se não vamos ter ninguém. É um momento muito stressante e completamente incomum para todos nós.”
Laura Bontempo, médica das emergências, diz que retira a roupa e o equipamento de trabalho numa tenda de descontaminação que instalou à porta de casa, envolve-se numa toalha e corre para dentro para tomar banho. Depois coloca as batas sozinhas na máquina de lavar para não contaminar as outras roupas. “Estou habituada a tratar doentes, trato doentes o tempo todo. Mas é muito diferente saber que o paciente que estás a tratar é um risco para ti também. Esta é a principal diferença aqui. Ninguém que trabalhe em hospitais tem medo de tratar pessoas doentes, só querem manter o pessoal seguro e os pacientes seguros ao mesmo tempo”, diz Bontempo, com 50 anos.
Meghan Sheehan tem 27 anos e é enfermeira. Acabou mais um turno de 12 horas: “O mais difícil é o medo que vive dentro de todos nós. Há muita coisa desconhecida neste momento. Tememos o que vai acontecer amanhã, qual vai ser o aspecto do serviço de emergência quando chegarmos na próxima semana. Temos receios pelos nossos próprios colegas, se vão adoecer. Também tememos ser portadores assintomáticos e trazer este vírus para casa, para as nossas famílias e para os nossos entes queridos. Tem havido muito medo sobre os mantimentos, se os mesmos vão acabar. E depois, obviamente, há o medo de ver os pacientes e não ser capaz de fazer nada do que normalmente podemos fazer para ajudar a salvar-lhes a vida.”
Vai para casa todas as noites sem ligar o rádio e usa o tempo tranquilo para pensar sobre o turno e os seus pacientes. Quando chega, esforça-se por não o fazer mais e não reviver o dia. “Entro em casa, tomo banho imediatamente e tento jantar com a minha família, sempre sem falar sobre isso”, diz. “A noite é definitivamente a parte mais difícil, porque estás constantemente a pensar no que o dia seguinte te trará.”