Nós e os holandeses
São muitos na história os caminhos que cruzaram portugueses e holandeses, não parecendo sensato ignorar as vantagens de ambos os povos numa cooperação conjunta na actualidade.
É actual no debate político e estimula as minhas memórias, a recordação dos meus anos na Holanda, dos melhores da minha vida. Como pretendo excluir todos os preconceitos que possam deformar comparações (vieses), começo por manifestar a transparência que torna este ensaio mais objectivo: vivi na Holanda, dia a dia ou por períodos mais ou menos longos, entre 1976 e 1982, tenho uma filha e um neto nascidos na Holanda, outra filha, nascida em Portugal, casada com um holandês. A história talvez ajude a compreender dois povos distintos, na origem e na vida, sendo demasiado simples esgotar as diferenças na concepção de que uns são povos do norte e outros pertencem ao sul.
A república da Holanda foi reconhecida em 1609 pela grande maioria dos países europeus, incluindo a Espanha que, por essa altura, ocupava Portugal. Desde o renascimento os portugueses digeriam o império, com duas facetas que ainda hoje persistem: mostrar o luxo e a megalomania.
D. Manuel, rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia, foi um exemplo desse delírio de grandeza, passeando nas ruas de Lisboa em procissão encabeçada por um rinoceronte e quatro elefantes amestrados. Melómano, sobrevalorizava a personalidade, exigindo que lhe tocassem serenatas sempre que afundia na sesta pós-prandial.
Enquanto em Portugal a corrupção ia arruinando um povo que se satisfazia na lisonja, no servilismo e no favor, na Holanda, Marnix de Sainte-Aldegonde era o intelectual dominador que, na posse de uma ideia e convicção, conquistou um direito à coesão que permitiu a construção da Holanda.
A fuga dos judeus de Portugal, escorraçados pelas suas convicções religiosas e pelas motivações políticas da corte portuguesa, fertilizou a Holanda na ciência, na arte, na educação e no comércio. Amsterdam, onde os judeus tinham liberdade religiosa e intelectual, desenvolveu-se rapidamente, levando a Holanda a ser considerada, no século XVII, como uma grande potência comercial no mundo.
Esta boa convivência que os holandeses concederam aos judeus que, na Holanda, procuraram refúgio, levou outros judeus, que na fuga de Portugal preferiram a Turquia para viver, a presentear o povo holandês com bolbos de tulipa originários da Turquia, iniciando assim, na Holanda, o desenvolvimento e comércio de um dos bens mais queridos dos holandeses. Foi também em Amsterdam que nasceu Benedito de Espinosa, importante filósofo determinista, filho de família-judaico portuguesa que havia fugido da inquisição lusitana.
São muitos na história os caminhos que cruzaram portugueses e holandeses, não parecendo sensato ignorar as vantagens de ambos os povos numa cooperação conjunta na actualidade.
Na Holanda é comum ouvir que “Deus fez o mundo e o holandês a Holanda”. A razão é o dique, o denominador comum dos milhares de metros quadrados que os holandeses conquistaram ao mar desde o século XVI até aos dias de hoje.
A sociedade holandesa no presente é uma mistura indefinida de gente pouco previsível. Podem passar por amigo ou conhecido e ignorá-lo; outras vezes, vendo-o ao longe, saem do seu caminho para lhe perguntar em que podem ser úteis. Com um passado calvinista, o holandês revê-se em estritos códigos de comportamento. É utilitário quanto baste, tolerante no pensamento, organizado, fazendo uso permanente de agenda onde todas as notas ou compromissos são escritos, incluindo horários que serão escrupulosamente cumpridos. Nenhum apontamento é descuidado, incluindo encontros privados com amigos que, como todos os outros compromissos, terão um dia e um horário escolhidos.
Qualquer expressão de talento próprio ou sinal de riqueza é mal visto, sobretudo se se tratar de trabalho ou ganhos profissionais. A qualidade é uma prioridade absoluta, sendo o esforço e o mérito bastante apreciados. A privacidade, sobretudo as emoções, devem ser respeitadas, sendo, contudo, mandatório que a organização social funcione como um todo. Todas as visitas, ou pedidos de audiência, terão de ser programadas e escritas na agenda, sendo tratada com brusquidão qualquer intromissão na vida do holandês que não esteja programada previamente. A amizade raramente soluciona problemas económicos, não sendo bem vista qualquer solução que não envolva o mérito.
Esta descrição resumida não necessita de comparação com a nossa forma de ser e viver português. Somos diferentes, gostamos de o ser, e temos boas razões para considerar que a Europa não deve ver Portugal como uma criança bem comportada, com excelente nota no exame final. Se o holandês privilegia o negócio e a precisão do relógio como contributo da eficiência, o português pode e deve ser um transmissor de uma cultura policromada, e de um humanismo em vias de esquecimento na Europa. Portugal não é uma família de computadores que se realizam na eficiência e no êxito. O português é um aglomerado de emoções, variável como os dias, exagerado na política, nas artes, na vida. É gente habituada ao sucesso e insucesso, à liberdade de ser diferente, tão bem expressa no desassossego e nos heterónimos de Fernando Pessoa.
Não há na Holanda a variedade cultural que temos. Os hábitos, a agregação humana, o folclore ou a gastronomia são diferentes no Minho ou no Alentejo, no Ribatejo ou no Algarve. Somos expressivos, por vezes exagerados, privilegiando a liberdade, às vezes em demasia, esquecendo o negócio ou o cumprimento de tarefas. Somos, também, viciados numa megalomania e ostentação, algo que a actual pandemia da covid-19 desbaratou em poucos dias.
É certo que temos uma adaptabilidade rápida a tempos de penúria financeira ou de confinamento da liberdade, como já provamos no tempo do Marquês do Pombal, na Primeira República ou no tempo do Estado Novo, onde nos cingimos a um rebanho de ovelhas domesticadas, onde mesmo para balir era necessário ter licença. Habituados a tudo resolver, preferindo por vezes o improviso ao trabalho necessário, encontramos soluções imaginativas, como as escolhidas por um recente primeiro-ministro que, exagerando na megalomania, concluiu que a dívida pública não era para pagar mas sim para gerir.
Mas que dizer da Holanda, onde um ministro das Finanças que ocupou um lugar na liderança do Eurogrupo, o senhor Jeroen Dijsselbloem, teve a indelicadeza de dizer que os países do sul gastavam o dinheiro em “copos e mulheres”? Previsivelmente, o senhor Dijsselbloem, sobre Portugal, só terá tido tempo para ler a história atribulada de D. João V, frequentador assíduo do convento de Odivelas, onde as freiras, nomeadamente a Madre Paula, eram o seu passatempo preferido.
Parece-me, assim, que o passado e o presente de ambos os povos não justificam posições extremadas na resolução do problema económico que a pandemia da covid-19 nos trouxe. Não estamos no tempo das feitorias, onde as especiarias eram trocadas por ouro ou outros bens. Talvez, nos tempos de hoje, o respeito, a tolerância e o humanismo sejam argumentos para a construção de uma Europa onde todos os países que nela confiaram possam desenvolver um futuro promissor para todos os seus concidadãos.
A Holanda que conheci era um país com dez milhões de habitantes, governado por gente que conheceu o drama da Segunda Grande Guerra. Recebiam os estrangeiros adaptando-os e adaptando-se. Quarenta anos depois, a população da Holanda ultrapassa os 17 milhões, uma mistura não miscível de autóctones e estrangeiros, sendo estes últimos obrigados à integração e não à adaptação. Portugal, com muita experiência de mestiçagem física e cultural desde a Índia de Afonso de Albuquerque, pode ajudar uma Holanda e uma Europa necessitadas de um humanismo perdido no nevoeiro do negócio.