Covid-19 e petróleo: um duplo choque para uma mudança sistémica

À crise sanitária global soma-se uma derrocada económica que pode transformar-se num tsunami social e político. E isto quando o mundo está sem liderança.

No dia 20 de Abril o petróleo foi transascionado a preços negativos no mercado de futuros americano. O inimaginável sucedeu num mundo que está a tornar-se inimaginável. Estamos mergulhados numa crise global de proporções bíblicas induzida por uma pandemia que está a deixar a economia virada de pernas para o ar. O mercado petrolífero é o primeiro balão de ensaio para um desafio colossal: o que fazer quando a procura se evapora e 2/3 do PIB mundial está paralisado?

Os preços do petróleo entretanto recuperaram, estão em terreno positivo, embora baixo, sendo que o Brent, o referencial para o mercado europeu, esteve sempre positivo. Muitos analistas tendem a subestimar o que aconteceu e interpretam isto como uma questão conjuntural e confinada à geografia americana. Isso é verdade mas não é tudo.

O WTI, o preço de referência para o mercado americano, é estabelecido em Cushing, no Oklahoma, onde está sediado o sistema de armazenamento americano. No dia 20 de Abril expirava o prazo de transacção dos contratos de futuros para Maio e ainda existiam cerca de 109.000 lotes para serem colocados, totalizando cerca de 109 milhões de barris. Se os contratos não fossem transaccionados, os seus detentores estavam obrigados a adquirir os volumes físicos correspondentes e não tinham qualquer possibilidade de os armazenar, porque o armazenamento estava saturado. Preferiram perder somas avultadas para evitarem ser penalizados e ficarem sem as suas licenças de operação.

O que aconteceu não foi surpresa porque duas semanas antes o órgão regulador americano, a Texas Railroad Commission, admitiu publicamente a possibilidade de os preços virem a ser negativos, dada a saturação do sistema de armazenagem, e quis introduzir uma cláusula nos contratos para evitar essa situação. Mas não teve êxito.

As interrogações hoje viram-se para o Nymex, que transacciona os contratos de futuros, e para o seu dono, a Chicago Mercantile Exchange, que tinha a responsabilidade, como acontece nestes casos, de contactar muitos dias antes os operadores e encontrar formas de minimizar o problema. Não o fez, o que aumenta a perplexidade. Acresce que existiram movimentos especulativos no mercado que amplificaram este problema e estão hoje sob investigação.

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Refinaria da Chevron em Pascagoula, Mississippi: a 20 de Abril, o barril de petróleo atingiu pela primeira vez valores negativos EPA/DAN ANDERSON

A pergunta que devemos fazer é: porque é que deixamos o mercado regular livremente segmentos tão críticos da cadeia energética como o sistema de armazenamento? O debate nos EUA está lançado, como muitos outros debates que a situação actual coloca. Por isso, o que se passou no dia 20 de Abril, analisado no contexto da crise global que a pandemia provocou, tem que levar-nos a conclusões mais profundas.

Não estamos em presença de um mero incidente ou de um conjunto de incidentes que vão passar depressa e depois regressamos ao “business as usual”. Assumir isso é um erro colossal. Estamos sim a testemunhar o fim de um ciclo económico com a emergência de algo novo, que ainda não sabemos o que é. Estamos em presença de uma mudança sistémica no nosso modelo de desenvolvimento económico e social, que pode ter consequências drásticas para o futuro da nossa civilização, se não tentarmos perceber o que se passa e encontrar um pensamento novo para lidar com o risco e a incerteza e fazer as mudanças necessárias. Se continuarmos a pensar que vamos resolver isto com o pensamento e os remédios antigos vamos bater com a cabeça na parede.

O colapso do preço do petróleo contaminou múltiplos mercados, desde logo o das matérias-primas, das equities, do crédito, das moedas e parte do sistema financeiro. O colapso da economia é global. O FMI disse que 170 países estão já em recessão económica e 90 pediram ajuda. É uma espiral recessiva impressionante. Podemos assistir a uma cascata de falências das empresas, a um exército impressionante de desempregados, o alastrar da pobreza, multidões desvairadas com fome nas ruas, um mundo em que todos vão lutar contra todos pela sobrevivência. Isso vai gerar instabilidade política e social, corroer as nossas democracias e marcar um retrocesso civilizacional sem precedentes na história.

A nossa esperança reside na mente humana, na nossa capacidade de ler a realidade, compreender a complexidade, ignorar as receitas simplistas e apressadas e produzir um novo pensamento capaz de fazer renascer a economia, a sociedade e a política, assente num modelo sustentável e mais justo, que evite o consumo exponencial de recursos e a destruição ambiental. Isso não só é necessário como possível. É muito importante não morrermos da doença, mas é também importante não morrermos da cura. À crise sanitária global soma-se uma derrocada económica que pode transformar-se num tsunami social e político. E isto quando o mundo está sem liderança.

O escritor inglês Anthony Sampson escreveu um livro com o título “Who runs this place?”. Quem manda aqui? A resposta hoje é: ninguém. Temos hoje uma combinação tóxica na política mundial: o vírus e a derrocada económica encontraram mais um companheiro e trabalham em conjunto com muito empenho para criar uma desordem planetária. Esse companheiro é Donald Trump. O Presidente americano retirou-se do mundo, abdicou de liderar a luta contra o vírus, ignorou o que os seus antecessores fizeram quando eclodiu a sida, o SARS ou o ébola. A grande nação americana está hoje desaparecida, ela própria flagelada pelo vírus e com uma liderança errática. Mas o problema é que a outra grande potência, a China, que em Março assumiu a presidência do Conselho de Segurança da ONU, não fez nenhuma reunião para evitar ser criticada pelos EUA.

É patético o que se passa: as duas grandes nações estão entretidas nos seus jogos maniqueístas quando o mundo está à beira de um abismo. Uma não quer liderar; a outra não sabe se quer assumir responsabilidades internacionais. E assim temos o único órgão multilateral, que pode coordenar os esforços do mundo, refém da inércia. Não é aceitável. E é por isso que isto abre uma grande oportunidade geopolítica para a Europa. Por uma vez, a UE tem que compreender que é crucial reforçar a sua resposta, avançar para uma união fiscal, traçar um grande plano de recuperação económica, assente na solidariedade. E deve reforçar a sua união política, falar a uma só voz, construir uma aliança estratégica com a maior democracia do mundo, a Índia, erigir um grande eixo democrático capaz de se impor e contrabalançar a deriva sino-americana.

Adolfo Bioy Casares, no seu romance A Invenção de Morel, descreve o seu protagonista, um fugitivo, que chega a uma ilha, sem ferramentas para enfrentar o futuro. E ele descobre que está num lugar do mundo “onde se não vive”. Nós não podemos permitir que o mundo se torne num lugar inabitável povoado por fugitivos.

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