Leonardo Mathias: O diplomata
Foi o mais brilhante diplomata do seu tempo e teve uma carreira sem paralelo. Portugal perdeu um grande servidor do Estado. Eu um mestre e um amigo insubstituível.
Para usar uma expressão habitual, Leonardo Mathias foi o melhor ministro dos Negócios Estrangeiros que Portugal não teve. O prejudicado foi Portugal.
Havia dois traços capitais na maneira de ser de Leonardo Mathias. O patriotismo e o amor à diplomacia. A isso juntava a inteligência, a cultura, o gosto de viver, o cosmopolitismo, o sentido de humor vibrante, o gosto e a facilidade das relações humanas.
O seu era um patriotismo inteligente, baseado num conhecimento profundo da História e do lugar de Portugal no mundo ao longo dela. Não se deslumbrava perante as maravilhas de outras civilizações e culturas que admirava e por vezes amava. Tinha uma espécie de consciência permanente da superioridade da civilização mediterrânica em que a nossa se inclui. Com a sua formação em História, o real imediato interessava-o inserido no respectivo processo histórico.
Não resisto a contar uma história reveladora do modo, a naturalidade e até o humor, com que afirmava a posição de Portugal no mundo. Leonardo era um entusiasta da Espanha, onde serviu duas vezes, a última como embaixador, e falava fluentemente espanhol. Um dia, era ele secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação e eu seu chefe de gabinete, e fomos a Londres, onde foi convidado a visitar o Parlamento. Fomos recebidos por um simpático membro do Parlamento que, num gesto um bocado teatral, empunhando um guia da casa, disse “não encontrei um guia em português, mas tenho aqui um em espanhol”. Leonardo não se moveu, não fez o mínimo gesto com as mãos para receber o guia, e impassível e espaçando as palavras respondeu “inglês, francês, alemão, farsi, mandarim, espanhol não falo”. O nosso anfitrião percebeu claramente a mensagem e o humor. Atirou o guia pelos ares e disse, “pois claro, quem é que se lembra de falar espanhol”.
A diplomacia não era uma segunda natureza para Leonardo. Era a natureza dele. Estava-lhe nos genes. Vivia a diplomacia como quem respira. Com a sua inteligência e cultura, um sólido sentido de Estado, mas também com alegria, com gosto pelos desafios que enfrentava com a confiança que lhe dava a sua mestria profissional. Como os melhores na nossa diplomacia, sabia tratar as outras potências de igual para igual, sem nunca perder o sentido dos nosso limites e de garantir o melhor equilíbrio para defesa e promoção dos interesses nacionais.
A própria carreira diplomática era para ele como uma espécie de segunda pele. Não concebia a ideia de outra profissão, o que dava azo a divertidíssimas conversas na fronteira do absurdo. Gostaria de ter um diplomata na sua descendência. Ainda vai a tempo.
Foi o mais brilhante diplomata do seu tempo e teve uma carreira sem paralelo. Depois de servir no Cabo, em Madrid e em Roma, foi o nosso primeiro embaixador no Iraque e depois representante Adjunto nas Nações Unidas, a primeira vez que Portugal foi membro do Conselho de Segurança, onde teve um desempenho marcante. Foi a seguir secretário de Estado, embaixador em Washington, Representante Permanente junto da então CEE, embaixador em Brasília, Madrid. Terminou, como era sua ambição, em Paris, onde seu pai fora longamente embaixador e onde Jaime Gama, conhecedor desse desejo, o quis colocar. Teve o que merecia. Roma paga aos seus generais.
A minha amizade com Leonardo Mathias data da minha adolescência, muito anterior pois à minha entrada para a carreira diplomática. Mas tive a sorte e o privilégio de trabalhar com ele durante cerca de oito anos, em Nova Iorque, como seu chefe de gabinete quando foi secretário de Estado, em Washington e em Bruxelas. Foram anos de intenso trabalho sempre feito com enorme empenho e a sua ímpar competência e sempre tirando o melhor proveito das coisas, com muito sentido de humor e as suas hilariantes e divertidas histórias, de que era um exímio contador cuja lembrança ainda hoje me fazem rir às lágrimas.
Portugal perdeu um grande servidor do Estado. Eu um mestre e um amigo insubstituível.