Ou estamos todos prontos ou ninguém está pronto
Não basta conhecermos a realidade nacional perante um vírus com estas características e com uma população sem imunidade. Qualquer descontrolo local pode traduzir-se rápida e novamente em circunstâncias nacionais difíceis de controlar.
Desde a semana passada tem ocorrido uma mudança gradual na mensagem que passa ao público. Passámos a ter no horizonte o fim do estado de emergência e o alívio das restrições impostas à sociedade portuguesa. O início gradual de uma nova vida.
Este seria sempre o período mais complicado no exercício delicado de Comunicação de Risco. Antecipar a abertura e explicar as opções políticas, fundamentar tecnicamente quando regressar e de que forma, ou a razão de abrir um sector e não privilegiar a abertura de outro.
Atente-se que algo que devemos ter em conta é que sistematicamente analisamos a situação nacional, expressa no número de casos que são relatados diariamente. Primeiro, é importante dizer que, no estudo de epidemias, a data mais relevante é a data dos primeiros sintomas, que nos permite o devido encaixe na dinâmica de transmissão. Na sua ausência, muitas vezes consideramos a data de diagnóstico, tal como indicado no boletim da DGS. Pelo contrário, o que está a ocorrer de momento no espaço mediático é o relato diário dos casos que são notificados no dia anterior, traduzindo a mistura de diversas datas. O foco neste valor é de menor utilidade. Como foi claro com alguns grandes desvios, ficamos sempre com vieses importantes quanto à evolução da dinâmica de infecção. O eco mediático segue esse número de casos, sujeitando-se a uma montanha russa de emoções.
O número de camas ocupadas de cuidados intensivos é, por exemplo, um indicador mais estável e dirigido ao fundamental nesta fase da pandemia: a capacidade hospitalar era o que queríamos manter abaixo do limite (o tal aplanar de curva) para podermos salvar todos os que viessem a precisar desses recursos. No momento destas palavras, temos, felizmente, uma estabilização da ocupação das camas de cuidados intensivos. A quantidade de pessoas em vigilância ou isolamento é um outro indicador subvalorizado.
Importaria também, a partir daqui, fugir um pouco da análise macro e nacional, e dedicar um olhar atento a cada região e localidade mais afetada. Como o artigo do geógrafo João Ferrão no PÚBLICO de 16 de Abril foi capaz de demonstrar, existem equilíbrios entre exposição e susceptibilidade populacional no que toca ao SARS-CoV2 e consequentes assimetrias importantes no país em termos de dispersão de casos.
Neste contexto, temos o exemplo da Região Centro sistematicamente com maior letalidade, o que poderá ter várias explicações, dentro das quais se inclui um menor conhecimento do número total de casos, por subdiagnóstico e/ou subnotificação. Foi pública a dificuldade de acesso a testes na região e que pode ter influenciado este resultado. Na semana passada, começaram a aumentar as possibilidades de teste no território mencionado. Outra hipótese prende-se também com uma maior idade média dos casos da Região Centro, ou com uma ocorrência em clusters específicos como estruturas residenciais para idosos. Todas estas hipóteses podem ter contribuído. Para além dessa realidade, podemos e devemos considerar concelhos em qualquer zona do país em que a dinâmica de transmissão seja distinta. E isto é demasiado importante para deixar passar em claro.
Para fins didácticos, consideremos o exemplo teórico seguinte:
Nesta curva epidémica, vemos uma curva aparentemente em decréscimo e que nos poderia dar alguma tranquilidade quanto à evolução. Vejamos agora a mesma curva epidémica, considerando três curvas epidémicas “escondidas”, sem sobreposição e desagregadas por territórios A, B e C.
O que nos é claro agora é que, enquanto os casos nos territórios B e C estão em decréscimo, uma curva mais pequena ainda parece estar a arrancar no território A.
Servem estes exemplos para fundamentar o seguinte: não basta conhecermos a realidade nacional perante um vírus com estas características e com uma população sem imunidade. Qualquer descontrolo local pode traduzir-se rápida e novamente em circunstâncias nacionais difíceis de controlar.
Ficou claro desde cedo que as estratégias de saída, que se seguiriam a esta fase mais intensa de supressão, tinham de ser preparadas. As mesmas deviam ser conhecidas, assim que possível, para serem comunicadas, efectivamente compreendidas e adoptadas pela sociedade. Mais, terão de estar pensados limiares a partir dos quais teremos de repensar a adopção de medidas restritivas novamente. Resumidamente, precisamos de premissas lógicas: resiliência provada do sistema de saúde, número de novos casos a descer, capacidade generalizada de teste, capacidade de vigilância, actuação rápida e assertiva perante detecção de casos.
Temos nos últimos dias olhado de forma sistemática para estas premissas? A Alemanha, por exemplo, para capacitar os seus serviços de saúde, decidiu que iria ter pelo menos cinco pessoas por cada 20.000 habitantes para o chamado “rastreio de contactos” incluindo o seu seguimento. Entramos na ponderação de desenho do sistema necessário para jogar ao gato e ao rato com o vírus por meses, tentando mantê-lo em níveis controlados com uma economia na normalidade possível. O desafio do acompanhamento de uma doença com estas características não deve ser subestimado.
A capacidade de vigiar e agir rapidamente perante a ocorrência de um conjunto de casos dependerá muito dos Serviços de Saúde Pública de âmbito local, da colaboração das restantes unidades de saúde e, principalmente, das comunidades onde estão inseridos. A determinação célere de medidas locais, organizadas, pode ser decisiva para não darmos um passo atrás e readoptar medidas nacionais. Neste período crítico, em Portugal, os Serviços de Saúde Pública contaram com a colaboração valiosa de vários profissionais, com o merecido destaque colectivo a todos os internos de formação geral (antigo ano comum) e de formação específica. Existe uma reforma de Saúde Pública em suspenso mas é necessário concretizar a capacidade destes serviços no curto prazo e pensá-los no longo.
Há pouco mais de um mês, apelando ao princípio de precaução, face a uma sociedade que não estava totalmente preparada, as premissas e contexto de decisões são diferentes das que serão tomadas a partir daqui.
Com uma comunicação assertiva, incentivos correctos e a capacidade de reagir rapidamente, temos confiança que conseguiremos afinar a proporcionalidade das medidas colectivas. Mas, para que tal seja verdade, todos têm de ter os meios e organização para desempenhar o seu papel. Não podemos depender dos tempos habituais burocráticos e da preocupação com susceptibilidades várias para não resolver urgentemente o que precisamos para uma nova fase da epidemia. As hesitações, em qualquer nível, poder-nos-ão custar caras e o investimento de muitos ser deitado a perder por poucos.
Estamos absolutamente dependentes uns dos outros para poder superar este desafio. E hoje, como ontem, mais vale prevenir do que remediar.
Médicos de Saúde Pública