O encontro com a História
Em virtude desta crise, sabemos que, se existir força de vontade, encontramos recursos e meios. Essenciais são a inteligência e a capacidade de agir rapidamente. A Humanidade é nossa única pátria e este planeta a nossa casa comum.
Pertenci a uma geração afortunada que, ao longo de décadas, assistiu com bonomia aos acontecimentos que mudavam a face do Mundo. O drama vivido à escala universal entrava em nossa casa pela televisão mas, no aconchego do sofá, a atenção só durava enquanto aquela não se desligava.
Subitamente a nossa vida mudou e, sem qualquer aviso prévio, fomos confrontados com uma realidade nova que mudou radicalmente a nossa forma de estar. Este vírus que nos invadiu, sem respeitar latitudes ou longitudes, carrega em si, não só uma tragédia à escala planetária, mas também interpela para um futuro incerto, que agora começa.
Muito daquilo que tínhamos como adquirido, e dávamos como garantido no caminhar para o amanhã, esboroou-se num ápice e sentimo-nos desorientados sem pontos cardeais que nos guiem. Como escreve António Scurati (O Fim de uma Era), falamos de uma geração que pertenceu ao pedaço mais abastado, protegido, longevo, bem vestido, nutrido e cuidado da Humanidade a pisar a face da Terra e que, agora, na casa dos cinquenta, está na fila do pão.
Em recolhimento forçado, quase prisão domiciliária, somos obrigados a abandonar aqueles pequenos gestos que diziam aos outros o lugar que ocupavam no nosso coração e pensamento. No entretanto recorremos a formas de comunicação no espaço virtual, mas tendo a compreensão de que nada substitui o calor do abraço ou a força da intimidade.
Confinados aos nossos maiores, ou menores, espaços de contenção temos a consciência do peso do isolamento, mas também descobrimos outro valor na relação com o outro e com a comunidade que nos rodeia, na qual somos mais um elo da cadeia, partilhando temores, mas sonhando com dias melhores.
Todavia, para além da insegurança e do alarme das notícias que todos os dias invadem a nossa casa, existem sinais que infundem a esperança de que algo está a mudar, e no melhor sentido.
Agora despertamos para a importância que o Outro tem na nossa vida e sentimos que ninguém está só nesta aldeia global. Com alegria saudamo-nos de uma varanda num gesto solidário ou agradecemos com gratidão os pequenos gestos daqueles que nos rodeiam, mas de cujo valor só nesta altura nos apercebemos.
É certo que nada será como dantes mas, no nevoeiro que rodeia o futuro, a solidariedade não será uma palavra vã. Descobrimos a importância do outro nas nossas vidas: da família e dos laços e afectos que a envolvem; dos nossos vizinhos; daqueles que, com risco pessoal e desapego ilimitado, trabalham pela nossa saúde; daqueles que nos fornecem artigos de primeira necessidade; daqueles que zelam por nossa segurança e ajudam no quotidiano.
Olhamos para todas as direcções e vemos o exemplo de gente abnegada que dá o melhor de si sem pensar em si. Desde o padre que prescinde do ventilador para que um jovem possa viver até à multidão de voluntários que procuram limar as asperezas da vida de tantos marginalizados a viver nas fronteiras do desespero, passando por profissionais de saúde que, lutando pelos outros, colocam em risco a sua própria vida.
Nestes momentos difíceis que partilhamos, neste encontro com a História, é o melhor de todos nós que se manifesta. Como afirma o Papa Francisco, “Quantos heróis, de todos os dias, a todas as horas”.
Lenta, mas gradualmente, de uma forma insidiosa, este vírus surgiu, mudando a face do globo e a História da Humanidade. Será mais de um dos dramas que a história escreverá e, sobre a forma como o enfrentarmos, as gerações vindouras serão o nosso juiz.
Colhemos agora o que semeámos no passado e somos confrontados com a necessidade de opções fundamentais que irão formatar o futuro. Teremos de escolher entre globalização e nacionalismo; entre Estado e mercado, e, também, decidir sobre a renovação do contrato social, a força das instituições democráticas, o monopólio tecnológico do poder, o futuro da Europa, a mudança climática ou a sustentabilidade.
Convivemos durante demasiado tempo com o efeito pernicioso de outros vírus, igualmente perigosos, e que agora emergem: a globalização sem regras numa cadeia infinita de externalização; a financeirização da economia e concentração de capital e o conhecimento gerado por novas tecnologias. Para combatermos o vírus, e dotarmo-nos das armas mais elementares, tivemos de recorrer à China porquanto deslocalizámos vastos sectores de produção, substituindo por realidade virtuais os bens, e serviços, que fazem a riqueza das nações.
A recessão económica que se segue irá trazer um longo cortejo de desempregados, e marginalizados, numa pauperização e perturbação social que se desenha no horizonte. As políticas económicas, e sociais, que irrompem devem ter como cuidado básico garantir a estas vastas franjas da sociedade condições para uma vida digna.
Durante anos escutámos que o risco estava na intervenção do Estado e dos poderes públicos, culpados de uma desajustada intervenção no funcionamento das intocáveis leis do mercado. Hoje verificamos que o importante, ou melhor, o essencial são as politicas públicas para enfrentar o momento que passa e nas quais está em jogo a vida e o futuro de todos nós.
A crise de 2008 foi um ponto de ruptura em que ficaram expostos alguns dos efeitos do esquecimento das pessoas: crescimento da desigualdade; novas e múltiplas lacunas na redistribuição económica; acentuadas reduções nos benefícios públicos; precariedade do trabalho; empobrecimento da classe média. Deverá ser outro o espírito que nos permitirá resolver os problemas económicos, e sociais, que hoje se levantam e que amanhã também será necessário na imprescindível reconstrução, que irá reclamar o nosso esforço durante anos ou décadas. Se aquela crise foi resolvida com medidas financeiras subordinadas a uma ortodoxia financeira e à aversão do deficit, hoje, na actual crise, tal já não é possível.
Os Estados reaparecem como esteio fundamental da protecção dos cidadãos, assumindo a importância das políticas de saúde e de assistência, protegendo os mais desfavorecidos, reconhecendo os direitos de todos e, essencialmente, o seu direito à dignidade. Neste momento difícil não são as regras de mercado que servem de referência, e orientação, mas sim as regras de um Estado de Direito edificado para a defesa do bem comum, bem como a força das instituições democrática e as lideranças livres e esclarecidas.
A guerra que temos de travar não é tão-somente contra essa forma larvar de vida que é o coronavírus mas, bem para além disso, é uma guerra contra os efeitos económicos devastadores de uma pandemia que atingirá os mais frágeis e marginalizados; contra uma globalização sem regras em que o lucro é o único móbil; contra um modo de vida que fez do consumismo a razão de ser da existência da Humanidade levada a pensar que bem-estar é acumular bens materiais.
Nesse combate só chegaremos a bom porto remando em conjunto. Como afirma o Papa Francisco, “Este é um tempo de coerência. Ou somos coerentes ou perdemos todos”.
Porém, para além deste perigo imediato de elevado risco, que surgiu célere e sem aviso, outros existem, com uma potencialidade de risco muito maior, colocando em risco o futuro de todos nós. Na verdade, a alteração climática que se verifica à escala global representa uma mutação profunda, e estrutural, da nossa forma de vida e, lentamente, está a corroer este nosso planeta.
É uma mudança que se prolongou, e prolonga, ao longo da vida de sucessivas gerações, acelerando agora de forma imparável, envenenando este mundo que nos rodeia.
Este último ano foi fértil enviando sinais daquilo que nos espera num futuro próximo e que vão desde os incêndios incontroláveis na Austrália até aos furacões com uma força incomum, passando pela acidificação dos oceanos e as temperaturas impensáveis.
Não obstante, perante a evidência da gravidade da situação, a inércia dos países, quando não a negação, tem sido o denominador comum e, inclusive, o cumprimento do Acordo de Paris começa a ser uma quimera Não é possível abrir caminho para um Mundo equilibrado, e saudável, quando os recursos naturais são explorados até à exaustão sem qualquer respeito pela natureza e pelos delicados equilíbrios que a mesma comporta.
A agonia do nosso planeta tem a sua origem numa procura de obtenção do máximo lucro sem obedecer a quaisquer regras, ou respeito, pela natureza.
Paradoxalmente a presença do vírus no nosso quotidiano, provocando mudanças radicais na forma de vida, abre novas portas sobre esta questão fundamental. Na verdade, foi visível, primeiro na China e depois na Itália, a diminuição da poluição na área afectada pelo vírus registada a partir de comparação de imagens de satélites. Se outras provas não existissem, ficou patente o efeito do impacto que a actividade humana gera e que é possível uma acção global de emergência para diminuir as emissões de gases e do efeito de estufa.
Evidencia-se neste tempo que a principal arma contra o coronavírus é a mesma utilizada contra a crise climática, ou seja, parar. Tal decisão desafia o modelo de vida pelo qual temos pautado a nossa forma de vida, caracterizado pela velocidade, quando não dizer pela corrida para o abismo. Numa lógica de globalização e exploração sem regras, em que estão aliados os sistemas produtivos e económicos, a necessidade de combater o vírus atinge um dos pressupostos da globalização que é a mobilidade, interrompendo de forma súbita, e universal, a circulação de pessoas e de mercadorias.
A crise gerada pela covid-19 demonstra que, desde que exista vontade politica, muito se pode mudar e que os instrumentos utilizados para enfrentar esta crise revelam uma força insuspeitada. Como pensar que, em dois meses, os Estados se mobilizariam à escala global com meios duma magnitude inimaginável?
Em virtude desta crise, sabemos que, se existir força de vontade, encontramos recursos e meios. Essenciais são a inteligência e a capacidade de agir rapidamente.
A Humanidade é nossa única pátria e este planeta a nossa casa comum.
Nas decisões que o momento presente convoca, a importância da presença da força moral e do capital ético. Na esteira de Orwell importa recordar a “decência comum”, uma noção moral básica, que nos dignifica como pessoas e instituições, na qual a nossa liberdade é temperada pela preocupação com os outros e pelo reconhecimento da igualdade de todos.
Essa mesma dimensão ética tem de estar presente em qualquer projecto comum, convocando pessoas e instituições para um futuro que é preciso erguer.