Está tudo bem na sua rua?
A comunidade é a nossa grande mais-valia neste momento. Desafio Portugal a pensar sobre isto. Conseguiremos nós criar estas equipas de bairro para a identificação e protecção dos mais vulneráveis? Estarão as redes alargadas das CPCJ de todo o país disponíveis para dar este passo?
Estamos a viver uma situação de crise com contornos nunca antes vividos, colocando-nos desafios que exigem a activação de todos os nossos recursos. Mais, exige-se ainda que encontremos forças e competências que nem sabíamos que existiam. É esta uma das possíveis vantagens dos momentos de crise. As aprendizagens que geram mudanças e crescimento positivo.
Esta crise tem um impacto negativo que vai muito para além daquilo que diz respeito à saúde física. Falamos também do impacto negativo a nível da saúde mental, com um aumento de perturbações diversas já observável. Falamos ainda do impacto a nível educativo, económico e social. Estamos perante uma guerra contra um inimigo invisível e que é, paradoxalmente, tão visível.
Ora, como em qualquer guerra, aqueles que apresentam uma maior vulnerabilidade prévia tendem a tornar-se ainda mais desprotegidos em contextos de crise. Pensamos nas situações de maus-tratos e violência, emocional, física ou sexual, que atinge acima de tudo as crianças, os jovens e as mulheres. Apesar das numerosas entidades com competência de intervenção nestas matérias manterem as suas funções, tal como os tribunais, a verdade é que, agora, o olhar não consegue ser tão atento como era anteriormente. Temos de ser honestos e admitir isto.
Assim, e perante uma rede formal mais fragilizada, é urgente reforçar a rede informal. Os familiares, os amigos e a rede de vizinhança. E diariamente observamos que, de norte a sul do país, as ruas e os bairros estão a começar a organizar-se para conviver. Ouvem música, cantam e começam a conhecer-se. Conhecer-se de facto, a conversarem uns com os outros. Porque, no fundo, eram apenas estranhos que partilhavam o mesmo prédio.
Por outro lado, assistimos também à forma como algumas favelas brasileiras estão a organizar-se, com a nomeação de um presidente e de um vice-presidente em cada rua, desempenhando um papel fundamental de monitorizar e tentar satisfazer, na medida do possível, as necessidades de cada morador.
Estas duas realidades fizeram-me recordar um projecto fantástico que conheci há uns anos no Canadá, a “Équipe Quartier” – equipas de bairro que percorriam as ruas a pé, acabando por conhecer e serem já conhecidos pelos moradores. Ao longo do tempo, e como consequência de uma relação privilegiada de confiança, as necessidades de cada morador iam sendo identificadas. E como eram satisfeitas estas necessidades? Preferencialmente, pelos outros moradores, naquilo que podemos chamar de uma verdadeira activação da rede comunitária.
Cruzando todas estas realidades, questiono-me se não poderíamos pensar em algo semelhante. Cada rua ou bairro, dependendo também da sua dimensão, ter um líder e um vice-líder a quem caberiam as funções de monitorizar e centralizar as diversas necessidades sociais de cada um, e de todos ao mesmo tempo. Necessidades essas que seriam depois satisfeitas de acordo com a sua natureza específica. Encaminhadas para instituições particulares de solidariedade social, para as entidades que intervêm na área da violência ou para as CPCJ da zona de residência.
Sabemos que existem linhas telefónicas, sms e e-mails para pedir ajuda. Mas sabemos também que quem é vítima de alguma forma de violência precisa confiar para conseguir quebrar o silêncio. E, apesar de parecer tão simples pegar no telefone ou enviar uma mensagem escrita, não é fácil o processo de tomada de decisão que o permite fazer.
A comunidade é a nossa grande mais-valia neste momento. Desafio Portugal a pensar sobre isto. Conseguiremos nós criar estas equipas de bairro para a identificação e protecção dos mais vulneráveis? Estarão as redes alargadas das CPCJ de todo o país disponíveis para dar este passo?