Fiscalização laboral tem metade dos inspectores previstos
Em Março houve 3000 denúncias à ACT, um aumento de 50% face a Fevereiro. Faltam carros, protecção e poder. “Não poderemos ajudar quem nos procura”, diz sindicato.
Sem pessoas suficientes, sem meios suficientes e sem poderes. Esta é a realidade da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), que dificilmente será o vigilante de serviço contra eventuais abusos laborais durante a pandemia de covid-19.
Depois de simplificar o layoff para os empresários, tornando-o quase imediato, o Governo de António Costa prometeu mais fiscalização, através da ACT. Basta raspar a superfície para se perceber que a ACT não está em condições de cumprir essa promessa.
A primeira falha é no pessoal. O mapa prevê 443 inspectores, mas o número real é 295. E 44 estagiários, que só ficarão prontos em termos de formação em Setembro.
Faltam 250 inspectores
Se fossem 295 (ou mesmo 339, já contando com os 44 estagiários), mesmo assim, os constrangimentos “já seriam graves”, aponta a presidente do Sindicato dos Inspectores do Trabalho, Carla Cardoso, inspectora na ACT há 19 anos. Mas a realidade é ainda pior.
É preciso descontar “cerca de meia centena, que estão noutras funções”: os 32 responsáveis pelos serviços desconcentrados; e cerca de uma dezena de inspectores que presta apoio à direcção da ACT ou que está noutros serviços.
A própria ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, que estava na ACT, assim como mais duas inspectoras que estão actualmente no Ministério do Trabalho, têm de ser “descontadas” daqueles 295.
Feitas as contas, sobrariam uns 250 inspectores. Todavia, ainda é preciso subtrair os que estão em casa a cuidar de filhos menores de 12 anos; e os que têm problemas de saúde e, por isso, não sairão para o terreno porque estão em risco acrescido em tempos de pandemia.
Portanto, sobra quase metade dos inspectores previstos no mapa. Um número que fica muito longe da norma da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A regra da OIT, de um inspector por cem mil trabalhadores, implicaria que a ACT tivesse 491 inspectores. Ao invés, terá nesta altura só cerca de 50% desse número.
Três mil denúncias em Março
Os números da ACT em Março, pedidos pelo PÚBLICO, permitem antecipar que vêm aí tempos complicados.
Em Março (dados até 9 de Abril), a ACT registou 3000 denúncias. A maioria eram pedidos de informação. Não é possível uma comparação homóloga porque “em Março de 2019 não havia registo centralizado de denúncias”, diz a ACT. Mas pode-se comparar com Fevereiro de 2020, que teve cerca de 2000 denúncias.
Isto dá um aumento de 50% em cadeia. Desse universo, 25% das denúncias diziam respeito a segurança e saúde no trabalho, 14% a retribuições e 12% a situações de crise empresarial ou extinção de posto de trabalho.
Portanto, 360 denúncias em Março estavam relacionadas com “crise empresarial” ou “extinção de posto de trabalho”. Uma média de 16 queixas desta natureza por dia útil nesse mês.
A ACT esclarece ainda que 37% das denúncias eram “pedidos de informação ou situações sem indícios de irregularidade”, pelo que foram concluídas e arquivadas. Desde o início de Março até 9 de Abril foram ainda abertos 939 procedimentos inspectivos. Um valor ainda “muito baixo”, considera Carla Cardoso, para quem o pior ainda está para vir. “Só quando as empresas deixarem o layoff e tentarem regressar à normalidade é que se vai perceber o efeito da crise, e aí os problemas vão surgir em força”, admite. O problema é que, para os inspectores, muitas vezes nem carro há. Ou equipamentos de protecção individual (EPI).
Concursos à pressa para carros
Nos últimos dias foram lançados concursos urgentes para tapar alguns buracos. No portal Base, que regista a contratação pública, há um contrato de 1 de Abril para a “aquisição urgente” de 250 headsets, para atendimento de chamadas em teletrabalho. Outro com data de 30 de Março é para o aluguer de curta duração de 40 veículos, por um período de 82 dias.
A ACT tentou no passado resolver o problema crónico da falta de carros através de aluguer de longa duração, mas o concurso ficou deserto.
Ontem, o Governo voltou a prometer “serviços públicos mais capacitados” para combater abusos laborais. A Direcção-Geral do Emprego e Relações do Trabalho passa a partilhar, com a ACT e com o IEFP, os despedimentos colectivos que lhe são comunicados. “A ACT terá mais um instrumento à sua disposição para, mais rapidamente e num maior número de casos, verificar indícios de ilegalidade”, diz o ministério de Ana Mendes Godinho.
Para Carla Cardoso, isto “é mera propaganda”. “A senhora ministra conhece bem esta casa, sabe bem que não temos pessoas, não temos meios, não há sequer garantias de que haverá EPI adequados, em número e em qualidade, para as viagens inspectivas que terão de ser feitas”, atira.
A última vez que a ACT adquiriu EPI foi em 2015, segundo o portal Base. Terá havido entretanto garantias de que já foram entregues agora equipamentos em todos centros locais.
Inconstitucional, diz Ordem dos Advogados
Nem nos supostos poderes reforçados da ACT há consenso. O Governo legislou no sentido de a ACT poder travar despedimentos ilegais apenas com uma notificação. Para a comissão executiva do conselho geral da Ordem dos Advogados, que analisou o decreto, é uma medida “inconstitucional”. Diz o parecer que “permitir que uma autoridade administrativa decrete suspensões de despedimentos, com base em indícios de ilegalidade dos mesmos, é inconstitucional por violar a competência dos Tribunais de Trabalho”. Para os inspectores sindicalizados, é uma “ficção”.
“O conjunto de leis que têm surgido no mundo laboral não traz qualquer benefício para o trabalhador”, assegura Carla Cardoso. “Não temos competência para travar despedimentos e não poderemos, infelizmente, ajudar quem nos procura”, continua.
A culpa, conclui o sindicato, é do Governo e da direcção da ACT, “que é nomeada pelo Governo e por isso tenta agradar ao poder quando fala em público sobre a situação” naquela instituição. “Estão a ser criadas expectativas de que a ACT vai resolver os problemas, mas infelizmente essas expectativas têm de ser desmistificadas, porque há barreiras legislativas e operacionais que nos impedem de as cumprir.”
Inspectores e juristas têm alternativas
Os reforços de pessoal andam a ser prometidos desde 2015 e 2016, sem nunca se concretizarem.
Na resposta inicial à crise empresarial provocada pela pandemia, o Governo legislou no sentido de facilitar o recrutamento temporário de inspectores noutros serviços. Para inspectores e técnicos juristas contactados pelo PÚBLICO, trata-se de uma “má opção” e uma “falácia”.
“Um inspector de outro serviço desconhece o direito do trabalho. Precisará de formação. Demorará meses até estar preparado”, vaticina Carla Cardoso.
O reforço com o concurso interno de há cinco anos foi prometido pelo Governo anterior em 2017 e 2018. Apenas em 2019, os 44 escolhidos (e não 43 como disse o ministério na semana passada) começaram estágio. A parte teórica terminou em Fevereiro. Todos passaram. Faltam seis meses de estágio prático.
Melhor seria “dar-lhes posse imediata”, diz a sindicalista. Anota que a componente prática afinal “está comprometida devido à covid-19”. “Dada a situação excepcional, propusemos uma medida ‘excepcional’ à direcção da ACT. Estes 44 já conhecem o direito e as regras. Seria uma forma mais célere de conseguir alguns reforços.”
Até agora, esta alternativa não mereceu reacções, assegura a mesma fonte.
Outros 80 inspectores já deveriam ter chegado através de um concurso externo lançado em 2016. Foram prometidos em 2018 e em 2019, até pelo próprio primeiro-ministro. Porém, até agora, nada.
A explicação oficial é a de que houve 9000 candidatos e muitas reclamações. Mas a dirigente do SIT contrapõe que outros concursos “com muitos mais candidatos” na administração pública “não demoraram quatro anos”. “O problema na ACT são concursos mal feitos e a incompetência. Quem dirige concursos são inspectores que, naturalmente, desconhecem as regras de recrutamento público”, frisa Carla Cardoso.
Pior: “Cada inspector tem um objectivo anual para cumprir na fiscalização. Quem é colocado nos concursos não fica isento desse objectivo. O que leva a mais atrasos. Alguns preferem empurrar com a barriga um concurso a falhar o objectivo anual.”
Na ACT também faltam técnicos juristas. Um deles, ouvido pelo PÚBLICO (sob a condição de anonimato, com receio de represálias), garante que cada concurso deixa centros locais sem juristas. Dá Évora como exemplo.
“Um jurista ganha 1200 euros. Um inspector ganha 1750. Quando há oportunidade de mudar de carreira, muitos apresentam-se ao concurso porque naturalmente acham uma injustiça ganharem menos”, afirma. Os que mudam deixam para trás lugares vazios, acrescenta.
Carla Cardoso confirma esse cenário, mas rejeita a proposta de os técnicos superiores passarem a inspectores, após formação prática. Essa ideia já foi sugerida por um grupo de juristas da ACT aos partidos no Parlamento e ao próprio Governo. “Resolveria dois problemas de uma só vez: reforçar o quadro de inspectores e valorizar o salário destes trabalhadores, que ganham menos 500 euros por mês, apesar das funções importantes que têm na fiscalização.”
A dirigente do SIT contrapõe: “Os juristas devem de facto ver a carreira valorizada, para que não queiram sair, porque são fundamentais no nosso trabalho. Cabe-lhes instruir e tramitar processos. Sem eles, terão de ser inspectores a fazer esse trabalho. Ou seja, serão mais uns quantos a não estarem no terreno a fiscalizar.”