Este nosso mundo não é avaro de emoções

Nesta aldeia do interior transmontano, do concelho de Mirandela, vive-se numa quarentena diária e permanente, com a possibilidade infinita de sairmos à rua sem interacções sociais.

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Podemos queixar-nos de tudo, menos de monotonia. Este nosso mundo não é avaro em emoções. Mas aqui, por agora, é diferente. As ruas na aldeia estão desertas, como é ou deveria ser apanágio dos dias que se seguem. Por aqui, é mais um dia normal. Tudo igual aos restantes 365 dias do ano. Nesta aldeia do interior transmontano, do concelho de Mirandela, vive-se numa quarentena diária e permanente, com a possibilidade infinita de sairmos à rua sem interacções sociais.

Na aldeia (quer na minha, quer nas restantes por esse país fora), as pessoas sempre foram sensíveis às catástrofes que assolam o mundo ou às desgraças das localidades vizinhas. E este vírus não está a ser excepção. Já o sentem na pele. A vida calma e serena já se tornou refém do medo. “Isto é o fim do mundo, não duvide”, vão dizendo por cá as almas mais amedrontadas. E talvez tenham o seu pingo de razão, seja lá o que for o “fim do mundo”.

Num destes dias de isolamento, a Primavera chegou, finalmente. A estação mais bonita do ano, apesar das circunstâncias. Usar as palavras “isolamento” e “Primavera” na mesma frase dá mais sentido à expressão “um mundo às avessas”. E é tão contraditória a junção de ambas na mesma sequência de ideias.

Lá fora, a natureza flui com naturalidade. Quase avessa à realidade dos dias que correm, que, por sinal, estagnaram. Aqui dentro, os dias passam — devagar — com alguma angústia, mas muita esperança. Daquela que a Primavera renova.

Quando era criança, sabia que a Primavera se instalava quando surgiam as primeiras papoilas. O cheiro a terra. Os primeiros dias mais quentes e longos. A Primavera chegava quando se ouvia, finalmente, o cuco a cantar. Esta sempre foi, para mim, a estação da liberdade. A estação que apura todos os sentidos.

A primeira memória que fervilha na minha mente é a dos dias de escola, quando chegava a casa e fugia para o campo ao encontro dos meus avós. Lá sentia-me livre. Com eles sempre fui livre. Livre como o espírito natural de qualquer criança. E a Primavera é isso mesmo – a liberdade.

Recordo-me de, às escondidas, me estender no meio dos prados, com as mãos espalmadas no chão, enterrava os dedos na erva macia, enquanto o céu se tornava cada vez mais profundo e azul. As nuvens eram cada vez mais sorrateiras e iam ganhando formas que me permitiam sonhar. E cá está novamente a liberdade. Já José Saramago defendia, algures, que todos nós devíamos ter nascido e vivido no campo.

Mas, esta (nova) Primavera tem um sabor diferente. Começou num dia escuro e chuvoso. Se calhar ela sabe os dias que lhe esperam. Aquele dia sombrio veio ao mundo por engano. A esperança é de que o Verão traga tudo aquilo que esta Primavera está condenada a perder.

Até lá, vêm-me à cabeça os versos de Carlos do Carmo, em forma de esperança. “Por morrer uma andorinha, não acaba a Primavera”.

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