Não há Norte certo para quem vive desnorteado. Ou talvez o haja e não lhe tenhamos dado espaço para existir. É preciso espaço, hoje, mais do que nunca. Não queremos a lua como única cuidadora, mas precisamos de espaço. Do nosso. Com planetas inventados a cada notícia mais assustadora a fazer-nos saltar da órbita e lugares à mesa que reservamos para quem lá couber na perfeição, quando for hora de comermos juntos. São jantaradas de vozes dispersas, onde se contam epopeias, se revivem sonetos e se escrevem memórias a cada riso desconcertado que evitamos questionar. Tudo isto através de um aparelho que outrora nos afastou e actualmente é o que nos faz juntar mais, fazendo o nosso mundo parecer maior. Não há estação do ano que os defina, mas são a última paragem do nosso bem-estar e a garantia de que qualquer isolamento passará à velocidade das histórias contadas entre perdigotos a fugirem da realidade. São isso, os amigos.
Os meus amigos vivem todos longe. Agora ainda mais. Sem geografia aprendida às três pancadas que faça parecer a distância em quilómetros algo relativo, houve sempre qualquer coisa a prolongar as auto-estradas e as pontes que nos separam. Ora, era o alcatrão dos dias apressados a fazer estender o caminho e a desalinhar o nosso ponto de encontro, ou a ponte que nos unia estava presa pelo fio das obrigações laborais e não a sabíamos partir. Não arriscávamos a colocar algo em causa, mesmo sabendo de antemão a força dos alicerces da nossa construção.
Há dias em que decretamos uma pausa nas obras. Chega de aumentar os passos, não há necessidade de inverter a marcha e muito menos seguimos o GPS. Nesses momentos, que nos sabem a semanas, somos o lado de nós com o pH mais neutro. Somos ácidos quando sentimos que devemos, mas voltamos ao lugar com os debates saudáveis a esculpirem-nos o interior. Sem Miguel Ângelo como inspiração, só com os moldes construídos em conjunto. Nessas conversas açucaradas, não há voz da razão na altura de nos digladiarmos sobre o melhor sabor de gelado. Ou outra qualquer pergunta trivial que nos faça ganhar o “queijinho” neste jogo de sorte chamado amizade. Fazemo-lo para vencermos as circunstâncias, para nos demonstrarmos que a sorte somos nós. Mesmos divididos em imagens de quatro, em telemóveis com mais ou menos definição ou através de SMS deixados para trás na altura da Maria Cachucha. A sorte será sempre quando tivermos alguém do outro lado da linha para expressar todo e qualquer anseio, mesmo sendo a resposta: “Vamos jogar ao galo?”.
É sabedoria ancestral que todas as pessoas gostam de plantas. Estão lá onde não as procuramos. Sabemos por linhas tortas e rabiscos direitos o porquê de existirem, porém associamos sempre ao trabalho dos outros o facto de ainda não terem morrido. Os amigos são qualquer planta exposta numa janela, a deixar o sol fazer o seu trabalho. Importa é termos a noção de que, qualquer planta que se preze, necessita de água para sobreviver. Dê por onde der – e normalmente ninguém dá nada a ninguém – é importante arranjar um furo no nosso quotidiano esquematizado para lhe darmos a água necessária à sua sobrevivência, que dependerá sempre da vida das plantas ao nosso redor. Hoje temos tempo. Há uma quarentena a lembrar-nos de que não podemos estar fisicamente com quem tira o melhor de nós. Por isso mesmo valorizamos cada carta, mensagem de voz ou videochamada feita de pijama com o sebo do cabelo a ditar a confiança que temos uns nos outros.
Do meu centro gravitacional eles habitam perto. Estão todos lá. Um por dois, ocupam a Balança do meu Sagitário e mandam a bússola da minha desorientação seguir o Norte determinado pela lei por eles imposta. Nos lugares que enchemos de presença – seja ela de que forma for -, sentimo-nos mais fortes do que a força rotineira a afastar-nos de sermos quem desejamos ser. Ali, naqueles momentos não contados, mas forjados a ouro na melhor parte de nós, podemos ser sem disfarces. Sem outra conjugação a vestir-nos um fato, a prender-nos no trânsito ou a deitar-nos abaixo face à pandemia na qual estamos a viver. Ali, somos diminutivos de nomes próprios e alcunhas de tempos idos. Nós, para abreviar tudo isto.
Os amigos, aos quais chamo meus, são o Norte certo para a minha “Sulidão”. Por mais Sul traçado a picotado no mapa da vida, são eles a nortearem-me enquanto me enchem de carimbos, de forma a não me esquecer de todas as vezes que estivemos juntos. Por mais vírus que passem, não há nada que possa contagiar a amizade.