Justiça no tempo de pandemia
Uma medida que deveria e poderia ser adotada está relacionada com audição/interrogatório de arguidos detidos por videoconferência. É sabido que, durante o inquérito, tal diligência poderá ser executada por videoconferência. Contudo, o Código de Processo Penal não prevê essa possibilidade quando o processo já se encontra na fase de instrução ou julgamento.
Vivemos tempos conturbados com esta crise de saúde pública em consequência da pandemia causada pela covid-19.
Um dos pilares fundamentais do Estado é a realização da justiça, competindo aos tribunais a sua execução, tal como estatuído no artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa.
A história vem demonstrando que em momentos semelhantes a este existe um sem número de situações que exigem a atenção da justiça. Durante surtos de doenças como a covid-19, vemos que os sistemas de saúde estão em dificuldades para conseguir lidar com a crescente pressão sobre os recursos. Nos últimos dias, temos visto vários pontos fracos no sistema de saúde, tais como a falta de mão-de-obra e acesso a medicamentos ou outras formas de tratamento, como é o caso dos ventiladores.
Em todo o mundo os meios são escassos, sendo que em Portugal, considerando a crise que vivemos desde 2008 (pelo menos), os meios que temos disponíveis ainda são mais escassos. Por isso mesmo, é importante acautelar a forma como esses meios são utilizados, evitando um uso abusivo dos mesmos.
Tendo por base o estudo apresentado em 13 de março de 2020 pela Transparency International Health Initiative Organization, verifica-se que a corrupção enfraquece o funcionamento diário dos sistemas de saúde, sendo que durante um surto isso só piora quando vemos um aumento de procura nos sistemas de saúde, tornando uma tempestade perfeita para atores corruptos tirar proveito das incertezas, distrações e perturbações que se seguem.
Veja-se o que sucedeu durante o surto de 2014 a 2106 do ébola, tendo sido bem documentado o papel da corrupção e crimes associados, sendo que organizações internacionais como a Cruz Vermelha relataram evidências de mais de seis mil milhões de dólares americanos perdidos por corrupção e crimes associados nesse período. Havia, a título de exemplo, evidências de desvio e má administração de fundos, com a duplicação de relatórios de salários e pagamentos de suprimentos duplicados, juntamente com serviços públicos que aceitam suborno para permitir que pessoas saiam de zonas em quarentena.
Por outro lado, em pequenos países como Portugal, com uma economia fragilizada, os cuidados a ter sobre a administração dos (escassos) meios que temos ao dispor assumem uma importância acrescida. Portanto, enquanto todos assumimos a responsabilidade de minimizar a disseminação do vírus, governos, reguladores, financiadores e profissionais devem observar determinadas regras ao tomar decisões sobre a melhor forma de responder.
Assim, desde logo, os estudos clínicos efetuados, bem como os dados relativamente ao desenvolvimento da pandemia, não poderão ser adulterados nem obscuros. Sem prejuízo do estabelecido nos diplomas legais que protegem quer os dados pessoais, quer os direitos de autor relativamente aos estudos, é imperativo que os ensaios clínicos sejam publicados na íntegra para apoiar a inovação científica, partilhados entre os diversos cientistas que se dedicam aquelas matérias e, por outro lado, deverão ser incentivados os mecanismos de comunicação para que sejam transparentes, não publicando dados obscuros nem adulterados.
Por outro lado, enquanto esperamos o desenvolvimento bem-sucedido de uma vacina, é necessário um regime de tratamento confiável.
Não podemos esquecer o que sucedeu aquando do surto de gripe suína, que levou o mundo a gastar mais de 18 bilhões de dólares americanos no medicamento Tamiflu, tendo posteriormente a evidência cientifica demonstrado que tal medicamento não seria melhor que o paracetamol no tratamento da gripe suína. Portanto, embora exista uma necessidade inegável de um tratamento para a covid-19, deve haver total transparência em todos os estudos e análises rigorosas para garantir que seja realmente eficaz antes que centenas de milhões de contribuintes sejam desperdiçados novamente.
Um outro resultado da pandemia é a eventual escassez de medicamentos. A Food and Drug Administration (FDA) nos EUA afirmou que não divulgará os nomes dos medicamentos atualmente com escassez, pois são “informações comerciais confidenciais”. Ao fazer isso, estão a retirar às comunidades de saúde a capacidade de efetivamente implementar estratégias de mitigação, como encontrar um fabricante alternativo, em favor de defender os interesses corporativos.
Assim, essas informações devem ser disponibilizadas pelo Infarmed à comunidade cientifica e aos operadores de mercado dos medicamentos, para garantir que o acesso a medicamentos que salvam vidas não seja afetado pela covid-19.
A aquisição nos sistemas de saúde é uma das atividades mais atingidas pela corrupção. Com a escassez de medicamentos e suprimentos médicos, haverá uma pressão adicional nas compras. Estima-se que na UE 28% dos casos de corrupção em saúde estão relacionados especificamente com a aquisição de equipamentos médicos. Com o aumento da demanda por medicamentos e equipamentos, há o risco potencial de conluio e os fornecedores podem exigir preços mais altos, sabendo que os governos não têm outra opção senão pagar.
Assim, processos de contratação abertos e transparentes permitiriam identificar com mais facilidade as red flags da corrupção, deixando menos espaço para os atores corruptos e garantindo que os governos recebessem preços razoáveis para que pudessem prestar o melhor atendimento possível aos pacientes.
Temos visto que há escassez de suprimentos médicos criados por pessoas que armazenam bens, tais como máscaras, luvas e desinfetante para as mãos. Na tentativa de lucrar com a histeria em torno do surto, os comerciantes estão a estabelecer preços inflacionados.
Para resolver isso, o governo indiano estabeleceu uma linha de apoio para que os cidadãos relatem itens vendidos acima do preço recomendado ou acima do preço anteriormente estabelecido. Por outro lado, empresas como a Amazon estão a remover listagens que consideram produtos de manipulação de preços ou publicidade falsa, tal como a que diz que é capaz de curar ou proteger contra a covid-19.
Governos e empresas devem continuar a adotar abordagens semelhantes para evitar esse lucro antiético e muitas vezes ilegal.
Assim, compete a todos nós alertar as autoridades para que se desencadeie os mecanismos necessários para combater os eventuais crimes de especulação e de açambarcamento.
Por outro lado, caso se verifique um incumprimento sistemático destas normas legais, deverá o Governo adotar medidas que estabilizem preços e medidas contra o açambarcamento por forma a combater essa ilegalidade, tendo para o efeito, além do mais, a cobertura da declaração do estado de emergência em vigor em Portugal.
A escassez de meios, tais como camas de hospitais e outros meios necessários para o combate à doença, eleva a possibilidade de risco de suborno. Na UE, 19% dos cidadãos relatam pagar suborno no setor de saúde, em média – na Alemanha, França e Espanha, o número aumenta para 29%. Esperando que esse momento não chegue a Portugal, corremos, contudo, o risco de ter que escolher quem tratar ou quem poderá beneficiar de determinados cuidados em detrimento de outros. Por isso, as evidências noutros países demonstram que as pessoas mais afortunadas terão a tentação de pagar para ter um atendimento preferencial em detrimento de alguém que poderia ser mais necessitado e mais vulnerável.
Não colocamos em causa o brio e mérito profissional de quem está no terreno (verdadeiros heróis) a ajudar os doentes a ultrapassar a doença, mas os dados que foram recolhidos internacionalmente apontam para a existência deste problema.
Para mitigar isso, uma série de intervenções podem ser tomadas, como listas de espera transparentes, códigos de conduta claros, fortalecimento do sistema judicial e mudanças de atitudes em relação a práticas corruptas.
Até o momento, ainda estamos a antecipar o pico do surto. Após os surtos de ébola na África Ocidental, tal como demonstrado no estudo apresentado pela Transparency International Health Initiative Organization, a infraestrutura de assistência médica melhorou como resultado do aumento do escrutínio e dos recursos dedicados ao fortalecimento do sistema de saúde. Assim, embora os surtos certamente não sejam nada que deva ser comemorado, eles criam espaço para discussões mais abertas e francas sobre questões nos sistemas de saúde. Nesse espírito, deveremos exigir ao Governo que aja sempre de maneira transparente. A saúde pública, não os interesses políticos ou corporativos, deve sempre ser a prioridade.
Por fim, deixo uma nota prática quanto a uma preocupação pela realização da justiça nestes tempos de pandemia.
Uma medida que deveria e poderia ser adotada está relacionada com audição/interrogatório de arguidos detidos por videoconferência. É sabido que, durante o inquérito, tal diligência poderá ser executada por videoconferência. Contudo, o Código de Processo Penal não prevê essa possibilidade quando o processo já se encontra na fase de instrução ou julgamento.
Em alguns países tal solução já se encontra consagrada na Lei. A título de exemplo, cito a Lei n.º 11.900, de 8 de janeiro de 2009, do Brasil, onde foi consagrada a possibilidade de o arguido detido ser ouvido por videoconferência.
Esta Lei Brasileira veio introduzir uma alteração ao Código de Processo Penal Brasileiro, permitindo que o interrogatório de arguido preso seja realizado, em sala própria, no estabelecimento em que estiver recolhido, desde que estejam garantidas a segurança do juiz, do procurador da República, dos funcionários, bem como a presença do defensor e a publicidade do ato.
Desde que sejam salvaguardados os direitos do arguido detido, esta seria uma boa medida para que a justiça continue a ser feita com segurança de todos os intervenientes.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico