Declaração de emergência ou da emergência da declaração?
A quarentena obrigatória e plenamente respeitada por todos os cidadãos poderá ser o único mecanismo à nossa disposição para reduzir os efeitos devastadores desta pandemia.
A eventual declaração de estado de emergência será discutida, nesta quarta-feira, pelo órgão consultivo do Presidente da República: o Conselho de Estado. A Constituição não impõe a consulta ao Conselho de Estado no caso da declaração do estado de emergência (al. e) do artigo 145.º. No entanto, quiçá por ser a primeira vez que, em quase 50 anos de democracia, a questão se coloca, tenha o Presidente da República entendido que o deveria fazer.
Sem prejuízo da reflexão que de seguida farei, é preciso reconhecer que a ideia do estado de exceção (estado de sítio e estado de emergência) tem efeitos societais, psicológicos e constitucionais não despiciendos. Senão vejamos. Desde logo, a memória externa do nacional-socialismo na Alemanha. Quando o Reichstag (Parlamento Federal) sofreu um incêndio – cuja autoria foi atribuída pelos nazis aos comunistas –, Adolf Hitler aproveitou-se da confusão generalizada que se havia criado para convencer o Presidente do Reich a suspender indefinidamente os direitos fundamentais que supostamente seriam “resistentes à ditadura” (os direitos à liberdade individual, asilo, inviolabilidade da correspondência, reunião e manifestação, propriedade privada, liberdade de associação e liberdade de expressão).
Esta dura lição histórica explica hoje a consagração expressa, no artigo 79.º da Lei Fundamental alemã, de entraves à suspensão do exercício dos direitos fundamentais. Nesta esteira, a Constituição portuguesa optou por consagrar a suspensão do exercício de direitos (artigos 19.º e 138.º) como um instrumento de garantia e dirigido à reposição, o mais rápido quanto possível, da situação de normalidade constitucional. Com este intuito, a declaração do estado de emergência não poderá operar sine die, sendo restringida a uma baliza temporal de 15 dias (que poderão ser prorrogados).
Uma das questões que mais têm preocupado os portugueses é o facto de a declaração de emergência implicar a suspensão de direitos e liberdades fundamentais. A Constituição alemã não estabelece, nem pela positiva nem pela negativa, quais os direitos que poderão ser suspensos. Diferentemente, se as Constituições espanhola e brasileira optaram por especificar quais os direitos que podem ser suspensos (entre outros, no caso da espanhola, a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e o direito de reunião, ou o direito à greve), a Constituição portuguesa optou por responder a esta questão pela negativa, apresentando um elenco de direitos que não podem ser suspensos: direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião (artigo 19.º/6).
Assim, e prima facie, na Constituição portuguesa, a panóplia de direitos e liberdades suscetíveis de suspensão é, de facto, preocupante e pode gerar alarme social. Não obstante, a Constituição e a lei salvaguardam que a declaração de emergência deverá especificar os direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso. Dito por outras palavras, a declaração de suspensão não é um ‘cheque em branco’.
Na minha opinião – ainda que conceda, como salientou Paulo Rangel numa entrevista à Sic Notícias, que o modelo constitucional português deveria ter consagrado um instrumento de garantia menos gritante do que o estado de emergência – entendo que o Presidente da República deverá avançar com esta declaração.
Em primeiro lugar, é discutível que a imposição nacional de uma quarentena obrigatória a quem não esteja presumivelmente infetado seja conforme à Constituição (podemos admitir que sim, numa leitura expansiva do artigo 27.º, e que atenda ao texto constitucional como um todo, compaginando a restrição à liberdade com o direito à saúde e à proibição do défice de proteção), tendo alguns constitucionalistas rejeitado essa possibilidade.
Ora, na vigência do estado de emergência, a quarentena obrigatória poderá ser decretada e eficazmente fiscalizada. De facto, na execução do estado de emergência, o Governo poderá impor “o reforço dos poderes das autoridades administrativas civis e o apoio às mesmas por parte das Forças Armadas” (artigo 9.º/2 da Lei n.º 44/86).
Sem dúvida, poderá argumentar-se que, tendo Portugal vivido quatro décadas de democracia sem estado de emergência, decretá-la agora seria uma atitude precipitada, Porém, facilmente se contra-argumentaria que, nessas quatro décadas, nunca se viveu uma pandemia global com elevado potencial letal e à qual os sistemas de saúde não conseguem dar resposta.
Em segundo lugar, existe um consenso alargado entre os partidos com representação parlamentar no sentido de a declaração do estado de emergência ser (ou vir a ser) inevitável para minimizar a propagação do vírus e evitar o colapso do sistema nacional de saúde. Uma vez que, na opinião de virologistas e especialistas em epidemiologia, tardará muito até se constituir uma imunidade de grupo que sirva como barreira à propagação da covid-19, a quarentena obrigatória e plenamente respeitada por todos os cidadãos poderá ser o único mecanismo à nossa disposição para reduzir os efeitos devastadores desta pandemia.
Em terceiro lugar, a memória do nazismo e do perigo do Nicht-Recht, ou seja, da ausência de direito e ameaça de ditadura, não se me afigura, neste contexto concreto, como realista. Com efeito, a declaração do estado de emergência é validada pelos três órgãos políticos de soberania: o Presidente da República (que a declara), o Governo (que a referenda), e a Assembleia da República (que a aprova). Trata-se, portanto, de um desenho constitucional que privilegia os “freios e contrapesos” (checks and balances) que são proporcionados pelo acordo entre os três órgãos de soberania democraticamente legitimados (a Assembleia da República e o Presidente da República, que possuem legitimidade democrática direta, e o Governo, que possui legitimidade democrática indireta resultante das eleições legislativas e do apoio parlamentar).
A terminar, e como pudemos comprovar, o processo constitucional de declaração do estado de emergência é complexo, não é imediato, e pode não se compaginar com medidas urgentíssimas que hajam de ser tomadas. Como o exemplo de Itália lamentavelmente nos ensinou, alguns dias podem ser demasiados dias em linguagem de epidemiologia. A restrição de alguns dos nossos direitos e liberdades fundamentais será um preço (menor) a pagar pela (maior) proteção de vidas humanas que lamentavelmente se perderão caso se opte por “esperar e ver”.
Todas as considerações económicas e financeiras acerca de uma paralisação do nosso país (e do mundo) são pertinentes e revelam preocupações muito realistas: recessão económica, desemprego, pobreza, exclusão social, entre outras. Todavia, são questões às quais se poderá dar uma resposta e tomar medidas no futuro. As vidas humanas que se perderão caso não se tenha coragem de atuar, essas sim, não se poderão recuperar nunca. Não podemos, pois, privando-nos dos mecanismos constitucionais possíveis (declaração do estado de emergência) para evitar uma maior propagação do vírus, pedir aos profissionais de saúde verdadeiros impossíveis. A responsabilidade de gestão desta crise não está nas mãos dos profissionais de saúde. Compete ao poder político legislar e governar para que os profissionais de saúde tenham as condições necessárias para ser o que todos esperam deles: os heróis deste terrível ano de 2020.